Visitas domingueiras

Pena que as tais idas e voltas às casas de vizinhos ou aparentados estão com seus dias contados. Melhor dizendo: já se foram faz tempo.

Antes, quando uma família se mudava para a nossa rua era quase de praxe, sem nos anunciarmos, batermos àquela porta, que nunca se mostrava fechada. Apenas bastava abri-la e logo na sala de visitas púnhamos os pés. E de repente  aparecia uma pessoinha. Ou um filho do simpático casal. Ou até mesmo a sogra que morava com eles sem pagar aluguel pois era bem vinda como a gente. E nós éramos em verdade intimados, sem ordem judicial, para voltarmos na mesma tarde. Ou na manhã seguinte, pois era um sábado, véspera de domingo, aquela pretensa importunação. Que em absoluto não era nenhum mal estar diziam os recém chegados ao nosso bairro.

E, quando a gente chegava. Trazendo nas mãos desenluvadas alguns quitutes variados que nossa avozinha fazia. Biscoitinhos de polvilho ou uma bolachinha de araruta recém egressa do forno feito em cupim morto. Coisas e loisas da roça que gente da cidade nem imagina. E não era preciso mostrar o cartão de vacina nem algum documento que comprovasse o nosso bom comportamento. Uma vez dentro daquela simpatia de residência, fosse em que hora for. Antes da primeira refeição do dia ou a derradeira. O pai daquela amistosa família desligava a televisão. E a dona da casa não reclamava por ser a hora da novela das oito e meia que nunca começava antes das nove e meia. A gente podia ficar até não se sabia a quantas horas naquela prosa animada. E se por acaso um de nós olhasse por detrás da porta da cozinha, ou da mesma sala simplesinha não víamos a tal vassoura em pé por trás da porta de saída. Pois nossa presença de fato era bem vinda.

Pena que os anos passarinham e os pardinhos se metamorfoseiam em canarinhos da terra amarelinhos.

E as visitas de compadres foram enxotadas dos costumes como cães vadios recebem pauladas quando adentram a restaurantes.

E os bons costumes não mais fazem parte de nossos eus.

A partir do ponto dessa crônica, nessa manhã de sexta feira doze de maio, tudo que se segue se tem um cadinho de verdade passem a borracha por cima daquilo que pensam ser mais uma invencionice minha.

João, que dantes era chamado pelo diminutivo, cresceu num lar desestruturado e onde as pessoas mal se toleravam.

O pai, postiço, já que os de mesmos genes o meninozinho nem conhecia. Era um beberrão inveterado. Chegava a casa, alugada, com o aluguel atrasado fazia meses. Isso quando chegava. A mãe de Joãozinho até rezava para que seu amasio dormisse pela rua. Nalgum banco da praça qualquer se valendo de um cobertor surrado para amenizar o frio. E quando seu padrasto apontava pela porta era de fazer dó a surra que nele dava, com seu cinto afivelado, no traseiro do pobre menino.

Na casa de Joãozinho faltava de tudo. Arroz com feijão regado à farinha, com um ovo por cima, era uma iguaria que fazia anos e anos que o moleque não comia. A despensa sempre ficava vazia da mesma maneira que a barriguinha do jovenzinho roncava.

Enfarado de tanto sofrer o menino ousou fugir de casa. Não foi difícil pois a porta da frente da velha morada nunca permanecia fechada pois, de tanto receber pancadas quando o padrasto de Joãozinho chegava trôpego e cambaleante, a tal porta perdeu não só os parafusos e as dobradiças e, se por ventura alguém a fechasse ou abrisse ela por certo cairia ao chão.

Uma vez nas ruas a pobre criança, dormindo ao relento. Tentando ganhar alguns trocados limpava os para-brisas dos carros uma vez parados nos semáforos.

Mas o papel de flanelinha não lhe fornecia o sustento necessário para atenuar-lhe a fome. E como dói sentir, no âmago, a barriga doer uma vez vazia.

Foi numa tarde de domingo do mês se maio, mês das mães, exatamente no dia 14. O garoto faminto, vendo um sem teto semi morto ao seu lado, estado esse levado por uma cachimbada de crack.

Num estalo pensou ter encontrado uma atividade lucrativa que o permitisse tirar o assento da penúria em que vivia.

Uma vez na rua, a mesma em que vivia, se é que isso pode ser chamado vida, Joaozinho comprou, em espécie, dez pacotinhos de baseados de marijuana purinha.

E com aquela pitadinha de droga, aos quinze anos, foi pego passando crack a um falso amigo.

Foi levado ao juizado de menores infratores. Como não sabia onde encontrar sua família foi levado a uma instituição que recolhia menores infratores. Um prédio imenso de grades nas janelas pelas quais mal se podia ver o nascer do sol e o desaparecer da lua.

Foi no domingo pregresso, ao passar próximo a cadeia de minha cidade, vi um amontoado de pessoas à porta do presidio.

Como já bem conhecia a cadeia antiga aqui da minha cidade, retratada no meu livro “O mundo das sombras.”

Acabei parando meu veículo para conversar com uma senhora  com aspecto envelhecido, embora sua idade não passasse de trinta e poucos anos.

“Quem a senhora vai visitar nesse domingo? Dia das mães”?

Ela, olhando-me fundo nos meus olhos,  derramando gotas salinas pelo canto dos seus olhos verdes, me disse: “ meu único filho mora aí desde cinco anos atrás. Foi preso portando alguns tabletes de cocaína. Que nem era pura. E vai pagar cadeia por mais dez anos. Todos os domingos espero a minha vez de entrar nesse presidio. E trago ao meu pimpolho, de nome Joãozinho, uma marmita cheia de coisas que ele amava comer”.

Que dia das mães ela iria passar. E que visita de  domingo triste a estava esperando.

 

 

 

 

 

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