Ele me provou…

Um dia li, não sei onde nem quando: “a dor é inevitável mas o sofrimento é opcional”.

O difícil é provar essa verdade.

Muitos sentem dores que deveras não sentem. São as dores fantasiosas meros fantasminhas que os médicos conhecem por “piti” (escândalos xilique), quando a pessoa exacerba em seus comportamentos, passando dos limites e agindo de modo escandaloso e desnecessário.

E somatizar é procurar sofrimento onde ele não chega.

Daí o dito do poeta português Fernando Pessoa: “o poeta é um fingidor…. Finge tão completamente, que é dor que deveras sente”…

E eu continuo, embora não saiba poetar e sim cronicar: “hão de comigo pensar que essa falsa dor é mera falácia. Mais falsa que uma nota de dez mil, perdida no fundo de um barril”.

E, na minha vasta experiência nas trilhas por vezes amara da medicina, afinal estou prestes a completar cinquenta anos de formado.

Ainda me mugem saudades daqueles anos todos em atendimento quase diuturno em unidades de saúde pública tanto em clinica medica quanto na minha especialidade urológica.

Soberbamente na unidade de saúde aqui conhecida por posto da Chacrinha. Dos tantos pacientes atendidos beirando os noventa por cento eram doenças advindas do sistema nervoso. E os dez por cento restantes eram portadores de diabetes, pressão elevada. Doenças típicas de sedentários e pessoas de mal com as balanças. Exceções são feitas.

E quantas vezes tinha de prescrever medicamentos já prescritos anteriormente por outros colegas de fardas.  Era uma repetição não intencional. E muitas daquelas dores em verdade não existiam. Mas, caso os contrariasse, dizendo não dar valor aos seus queixumes, seria por certo ameaçado de desligamento e processos a correrem nalguma vara da justiça.

Se bem que existam pessoas que amam se dizer enfermos. E não valorizam o bem maior que fomos agraciados por uma entidade superior. É só olharmos pra cima e sabidamente ELE existe.

Pode estar escondido por entre as nuvens perdido na azulice do céu.

Ou vagando entre nós como nossos entes queridos por certo estão.

E esse senhor, meu conhecido de tempos pretéritos, todos nesta cidade o conhecem melhor que eu.

Ele sempre me pareceu mais um brincalhão que propriamente um padre.

Esse padre é meu vizinho de consultório e pertinho ainda de  onde moro.

Hoje, antes da hora do almoço, em passagem perto de onde ele trabalha. Num posto avançado da casa dos padres. Ele me fez um convite irrecusável.

“Doutor!” Ouvi uma vozinha assaz conhecida partindo de uma parede da residência da Casa Paroquial. Era esse padre amigo de todos aqui da cidade.

“Entre aqui na minha casa e toma um cafezinho ao meu lado”.

Fui acompanhando em  passadas lentas bem ao lado daquele padre tão prestante.

Notei, durante a nossa caminhada um pequeno detalhe que não me passou despercebido. Ele andava com os pés calçados numa precária meia preta sem um par sequer de sapatos. E manquitolava tropegamente.

Enfiando a chave na fechadura do portão adentramos á morada dos padres Dehonianos. Foi então que me lembrei do meu livro ainda incompleto  já intitulado de “A Casa dos pequenos padres” que um dia irei terminar.

O padre, ele não era Dehoniano, imediatamente ligou a maquininha de fazer café expresso e me servi com adoçante.

Aquele padre, com menos dois anos que os meus setenta e três, dois passos adiante dos meus, subimos pelas escadas ele se apoiando num corrimão à direita e eu logo atrás.

Foi uma visita rápida como deve ser a de médico ao seu paciente. Ele sempre manquitola. E dizendo-se em perfeita saúde. Embora as evidências fossem contrárias pois bem o sabia que suas internações no hospital do lado eram bastante frequentes.

De ouvidos plugados aos dizeres de duas serviçais na casa dos padres logo senti que este heroico servo de Deus omitia queixumes.

Mas  como médico acostumado em nossa lida diária já percebi a gravidade de sua enfermidade.

Padre Carlinhos, discípulo do Senhor Nosso Deus, era um daqueles que não se dizem enfermos. Embora nele esteja estampado, não apenas por sua aparência fragilizada, como o forte odor de urina que emergia de suas vestes singelas.

Padre Carlinhos. Eu o reverencio convicto da tal premissa- a dor é inevitável e o sofrimento opcional.

O senhor me provou, por a+b, que nem tudo que dói deve ser extravasado. Já que um poeta pode ser um fingidor. E a dor que deveras sente pode provocar dor maior naqueles que o cercam.

 

 

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