Em absoluto, não me entrego à velhice

Não nasci velho. Como sei que com ninguém assim aconteceu.

Quando nasci era um jovem neném, chorão, resmungão quando em mim vieram as primeiras palavras, balbuciantes de começo, equivocadas de início, mas depois, quando a escola pediu abrigo dentro de mim, as coisas começaram a endireitar-se.

Depois os anos foram crescendo. E eu crescendo ao sabor dos anos.

Atingi as dimensões em que me encontro, de poucos palmos de altura, por volta da volta dos dezoito anos. Após esta data não mais cresci. Cheguei à altura dos meus progenitores. Não a envergadura ética, ou moral, ou de experiência culta em que meu pai me deixou, aos pouco mais de setenta e sete anos. A minha mãe, que Deus a tenha ao seu lado, era de uma estatura linda, como seus olhos e pessoa ensejavam. Os irmãos de meu pai atingiram altura maior que a dele. Salvo o de uma irmã, mais jovem dentre todos. Os de minha saudosa mãe rivalizavam com ela em dimensão.

A partir dos vinte anos fui deixando a criança que morava em mim sumir no emaranhado túrbido dos anos. Foi então que a responsabilidade do adulto começou a mostrar as garras dentro do meu eu.

Nesse tempo, que se vai longe, depois de terminar o segundo grau, naqueles verdes anos era curso científico, ainda se usava fazer admissão, uma ponte entre o curso primário e o secundário, em minha querida Lavras não havia o curso de medicina. Como hoje aqui se encontra.

Foi necessário afivelar as malas, conter a dor da separação do meu lar, naquela Rua Costa Pereira de tantas e tantas lembranças ternas, naquela casa que inda hoje mora lá, onde a querida irmã Rosinha ainda contempla o tempo presente com a alma de criança que ela nunca vai deixar de ser, e me desgarrar do velho ninho, em busca de ideais e sonhos que tiveram começo durante o derradeiro ano do curso cientifico.

Isso aconteceu antes, bem antes, do tempo de agora. Perdi a conta de quantos anos foram.

De volta à Lavras, com o título de especialista em Urologia dependurado na parede do meu consultório, ladeado a outros diplomas na época significantes, hoje não tanto, por aqui, pela vez primeira, em carreira solo, empunhei, com mãos trêmulas, não pela idade, e sim pela emoção de ser a primeira vez, o cabo do bisturi, hoje instrumento quase aposentado, como ele não serei, pois me considero longe da aposentadoria, pois quem aposenta o médico não é ele próprio, e sim os pacientes que transferiram a confiança para esculápios mais jovens, no entanto menos experientes. Pois a competência não se mede pela idade. E sim pela facilidade de escutar, de penetrar a alma dos enfermos, de saber ouvir-lhes as súplicas, confortar-lhes os anseios, de dar-lhes tempo de ficarem assentados à cadeira confortável de frente a nós, e não chegar ao diagnóstico depois de encher folhas e folhas de papel uma vez digitadas naquele computador de muitos gigas de memória, que acaba ficando velho depois de um ou dois anos apenas.

Aos vinte e oito anos me casei. Tive a sorte de ter escolhido uma mulher maravilhosa. Que me fez presente de dois filhos mais ainda lindos do que fui. Em menino, naqueles tempos idos de Boa Esperança, quando de ali me mudei, mas foram meus pais que se mudaram. Eu apenas os acompanhei.

Como me cansaram, o corpo, não a mente, aqueles fecundos vinte e tantos anos quando em Lavras me desdobrava entre três hospitais. Agora são apenas dois, de alto gabarito, muito mais modernos e eficientes no trato com os pacientes como antes acontecia.

Fui o único especialista em rins e vias urinárias, órgãos genitais e adjacências, durante mais de vinte anos. Por fim apareceram novos urologistas, colegas de farda, jovens médicos de provada competência, que aqui, em minha cidade, não é apenas minha, assentaram praça, ajudando-me a preencher as falhas da especialidade armada, cada vez tornando obsoleto o bisturi, com máquinas que fazem quase tudo, menos escutar os queixumes dos pacientes que nos procuram. Ávidos por se verem livres dos seus tormentos vários.

Depois, com menos altura que tinha antes, mal chego aos um metro e setenta, de pés descalços, passados os sessenta anos, em sete deles, ainda me sentindo jovem, não na idade, e sim na vontade de não crescer, como me sinto bem entre os meninos, entre os de mais idade me sinto confortável, impeli novos rumos a minha então atribulada existência.

Agora sou dono das minhas horas. Vou ao hospital quando me apraz ir. Ainda sou refém de postos de saúde. Embora percebendo pouco, poucas horas fico por lá, não posso me dar ao luxo de viver às custas apenas de clínica privada, que mais e mais raleia, como as águas mínguam quando não se tem o cuidado de bem tratar a natureza.

Aos sessenta e sete anos estou na melhor forma da minha velhice. Corro como nunca fi-lo antes. Nado como um pato sem asas. Pedalo na minha bicicleta sem as rodinhas. Escrevo com o furor de um furacão que se acalma apenas depois de um livro finito. Tento falar novas línguas com o desejo de um homem por uma linda e voluptuosa fêmea. Faço tudo melhor que dantes fazia. Tomara a vida perenize em mim este desejo sempre.

Sei que o idoso tem várias prerrogativas. Ainda recente fiz uma viagem de férias ao velho continente. Como o velho é bem tratado, cortejado e respeitado! Tomara que aqui cheguemos a esse estágio desenvolvimentista. Que não tarde demais, ou de menos…

Se um dia, quando, nem sequer imagino, sentir-me de fato gasto pelos anos, pressentir que as enfermidades abocanharam-me o desejo de me sentir vivo, não puder expressar o quanto sou feliz no planeta tão lindo que os homens teimam em destruir, ai, sim. Podem me libertar de dentro de mim. Não me deixem viver sem que possa correr livremente distâncias que só os carros percorrem, com seus motores possantes, com seus pneus deslizantes. Não me atrelem, jamais, a um leito de hospital, cheio de tubos, de sondas, em meio a stomas, sem poder sequer levantar a mão para pedir, melhor implorar, que desliguem os aparelhos que me mantém vivo, contra a minha vontade imensa de morrer. Em paz.

Ah!, quando não puder escrever, quando meus dedos ágeis não mais conseguirem teclar as letras brancas do meu teclado negro, por causa de uma rigidez das articulações, ou por motivo qualquer, por favor, inventem algo que, pelo menos, torne factível que as palavras que jorram aos borbotões do meu cérebro hiperativo possam ser passadas adiante, imortalizadas, não eu, pessoa, e sim em outros livros mais. Tantos que são.

Para findar este texto, que venham outros, digo: “Em absoluto. Não me entrego à velhice. Vou resistir à decrepitude enquanto as letras e o fôlego não me abandonarem de vez. E, caso um dia acontecer, sei que vai suceder, no instante que as minhas forças me abandonarem, ficar entregue a um exíguo alento de vida, quando a morte aparecer, com sua carruagem puxada por corcéis negros como a noite escura, de um inverno outono da minha vida, afinal, finalmente, não mais resistirei à partida, ao outro lado da vida. Se é que ele existe”.

 

 

 

 

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