Disse Baudelaire: “A felicidade é feita de pequenos prazeres”.
Não sei o que pensam, ou se pensam, os cães vadios, que perambulam pelas ruas atrás de restos das sobras, cavoucando sacos de lixo, esparramando pelas ruas da cidade a fedentina oriunda das sobras das mesas de pessoas de pouca consciência, que, primeiro não deveriam ter desperdício, e caso os tivesse os tais resíduos orgânicos deveriam ser destinados não aos sacos pretos, ou de outra cor qualquer, frágeis que se desfazem nas mãos dos garis, empestando o asfalto com seu cheiro pútrido, do qual apenas se locupletam os urubus.
Já afirmei, reafirmei, confirmei : adoro qualquer animal, sobremodo os irracionais (será que eles em verdade os são?)
Da mesma forma me apoquenta o contato cara a cara com meus iguais. Não todos. Mas, pelas notícias que escorrem pela mídia, ávida por ver sangue nos telejornais, mais e mais tenho a temer certas pessoas, de má índole, que se aproveitam da fragilidade dos idosos, quase entre eles me incluo, dão golpes com ou sem injúrias marcantes na vítima, aproveitam-se da ingenuidade dos velhos, seguem-nos nas caixas eletrônicas das casas bancárias, observam-lhes a hesitação no lidar com aquelas máquinas que não falam com a gente, apropriam-se das suas minguadas economias, que mal duram até o meio do mês, resultado de anos e anos de trabalho duro.
Pelas razões enumeradas acima volto a escrever : a certos homens prefiro os de quatro patas. Que no máximo podem escoicear, ou morder, sempre por um motivo palpável: seu dono fez-lhes mal, querendo, ou sem sentir.
Hoje, ao descer a rua rumo a onde estou, na minha oficina de trabalho, na parte alta da cidade, pertinho de onde moro, vi um cãozinho negro, peludo ralo, de aspecto saudável, andando taranteando, tonto, vagando a esmo, fuçando aqui, cheirando ali, procurando, pelo visto, algo para mitigar-lhe a fome.
Acontece que de véspera havia chovido a cântaros. As ruas, as calcadas, estavam límpidas, quase imaculadas.
Não havia um só saco de lixo, coisa rara, onde os cães vadios pudessem pelo menos enganar a fome. Já que matá-la de vez seria uma heresia.
Fomos caminhando, alternando as passadas, por uns bem medidos dois quilômetros.
Ele andava de quatro pernas. Eu, com as minhas duas.
Enquanto eu o observava, sem nada poder fazer para ajudá-lo, não tinha ração a oferecer, o cãozinho vagava desnorteado pelos passeios ainda molhados pela chuva de ontem a noite.
Fomos assim por muito tempo.
Numa esquina, mais perto do meu trabalho, creio que aquele cãozinho de rua estava desempregado e sem dono, mais um animalzinho que foi abandonado pelo simples pecadilho de ter crescido um pouco só, o tal cachorrinho vagabundo desapareceu-me dos olhos.
A partir de então nunca mais o vi.
Onde teria se enfiado o tal? Teria, afinal, encontrado um novo lar? Ou seria mais uma vítima fatal de algum carro, ou da carrocinha pegadora de cães de rua, ou, tomara, sido feito refém daquela casa cuidadora de cães vadios, de conduta e postura tão meritória, digna dos mais sonoros aplausos? Nomeada de canil municipal Parque Francisco de Assis.
Após o sumiço do cãozinho vagabundo não mais deixei de nele pensar.
De repente, não mais que num repente, me veio à lembrança um menino que um dia vi.
Era uma tarde quente. Úmida, envolvente. Meados de verão.
Ao me refrescar numa sorveteria que faz divisas com uma praça linda, sobretudo quando chove em demasia, ela se vê livre dos amigos do ócio, pessoas que fazem da praça um local de negociatas, ou de lazer, eis que meus olhos inquiridores avistaram um meninozinho franzino.
Era preto como jabuticaba madura. Liso como asfalto novo. Magricela como o tal cãozinho meu antes conhecido.
Percebi, na curta estada na casa onde se faz sorvetes deliciosos, que o jovem menino estava a esmolar.
Trazia uma latinha de ervilha vazia, creio eu, numa das mãozinhas magras. Que talvez fosse o cofrinho para ajuntar moedas, uma a uma, para tentar pagar a ração do magro café da manhã.
Vestia apenas uma bermuda gasta, que, por certo, herdara de uma alma caridosa, cujo dono não mais queria usar aquela peça velha e fora de moda.
No peito fundo, costelas à mostra, havia sinais evidentes de maus tratos: uma cicatriz enorme, dois pontos puntiformes, sinais de perfuração por objeto pontiagudo.
O tal menininho, de quem nem consegui saber o nome, se Joãozinho, Tião, ou Zezinho, depois de receber uma nota de cinco reais, quantia irreal para suas posses mínimas, agradeceu-me mostrando o brancume perfeito da dentição, que se mostrava mais branca dada a cor de sua pele de ébano.
Noutro dia, longe, ao passar pela mesma sorveteria, num dia como o outro, quente e úmido, vi, com estes dois olhos que se melindram tanto, graças à sensibilidade que me encanta, duas figuras bem parecidas.
Era o cãozinho negro, de pêlo luzidio e liso, acompanhado de perto pelo menininho pedinte, ao qual ofereci a nota de cinco reais, nem sei qual o destino foi dado a ela.
Uma vez em casa, no conforto do meu lar, pensando com a cabeça lotada de pensamentos vários, numa coisa que de repente me fez matutar: não seriam, o jovenzinho escuro, e o cãozinho da mesma cor, uma só pessoa?
Deixo a vocês, aqui, antes de terminar, a elucidação da minha incógnita. Será?
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