Acabei me tornando um lambe-lambe da saudade

Quem ainda não viu, numa praça qualquer, hoje quase não se pode ver mais, um fotógrafo a moda antiga, pelas suas mãos caludas nunca passaram um celular, naquela máquina dotada de um pano escuro que lhe tapa a cabeça, que, ao espocar o flash solta fagulhas e causa um estouro enorme, dali saindo uma fumaça cinzenta brancacenta, igual a que soltava a velhusca Maria Fumaça, a anciã locomotiva movida a carvão, que ainda se pode contemplar em museus, paradinha da silva, ou fazendo trajetos curtos pelas estradas deitadas sobre dormentes gastos, de tanto ver por cima transitarem velhos comboios, pachorrentos vagões, guiados por vetustos maquinistas engalanados em ternos azuis, na cabeça vestiam quepes de abas curtas, com listras doiradas, causando em nós, saudosistas, uma espécie de arrepio que se parece ao chiuiiii chamativo, um chiado nostálgico que inda me faz lembrar, com que saudade, dos velhos tempos que infelizmente não voltam jamais.

Tenho procurado em vão os tais fotógrafos de instantâneos que muitas pessoas guardavam as fotografias em preto e branco, um tanto quanto amarelecidas pelos anos tantos, em velhos álbuns de capa vistosa, onde se mostravam imagens de velhas lembranças, de pais falecidos, de netos já crescidos, de tanta gente que infelizmente não mais faz parte desse mundo de agora. Um tanto quanto hostil demais para confrontar-me a enorme sensibilidade que guardo aqui dentro, de um peito cheio de desalento, sofrido demais. Não apenas pelas recordações que me enchem o âmago, tantas e tantas que são.

Numa destas procuras, numa tarde primaveril, com sabor de inverno, por vezes me situo no outono inverno da minha velhice, ao caminhar por aquela praça, que daqui se deixa ver, pensei, afinal, ter encontrado o velho lambe-lambe na sua faina habitual.

Aproximei-me do idoso o qual pensava ser ele. Cautelosamente dele acheguei-me.

Por detrás, devagarzinho, pelas costas, sorrateiramente, pensei estar despercebido.

Como gostaria que fosse o mesmo velhinho com o qual me encontrei, uma vez apenas, noutra pracinha quase relegada ao olvido, quando ainda era criança, na linda Boa Esperança, onde nasci. Naquela época vestia um terninho de calças curtas, vim a saber depois que o mesmo foi feito com o tecido da perna de um terno do meu avô. Eu era lourinho como um canarinho da terra, depois de mais crescidinho. Pena que não cantava como elezinho. Muito menos podia voar como os passarinhos.

Naquela pracinha de Boa Esperança, o menino lourinho que morava em mim apontava o dedo indicador, o mesmo que se transformou em instrumento de trabalho do urologista que hoje sou, como se fosse usá-lo como arma de fogo. Só que apenas escutava-se o estampido rouco da saudade que aqueles verdes anos deixaram, e não mais me abandonaram, nunca mais.

As fotografias, todas elas mostradas num porta-retratos de moldura negra, nunca foi negro o meu passado, talvez tenha sido feito num instante mágico, por um destes lambe-lambes que o presente desinventou. Não posso jurar que assim o foi. Tomara tenha sido.

Já que os lambe-lambes desapareceram nos tempos hodiernos, foram substituídos pelos selfies sem sabor de laranja da ilha na safra, ou de jabuticaba madurinha chupada no pé, eu mesmo, de tempos pra cá, em minhas crônicas tantas, as quais escrevo como se fossem chispas de uma fogueira emersas de uma festa junina, a qual fogueira não desejo nunca que se apague, como sonho com as lembranças tantas do meu passado, que se enseja naquela rua que daqui se deixa ver pelas costas, a Costa Pereira que não me sai da cabeça, pois ali moraram meus pais, tios, avôs, primos e aparentados, tantos poucos que foram, muitos ainda são vivos, e com eles felizmente convivo, sem a máquina de lambe-lambe, sem o agente que se escondia por trás daquele aparato tão gratificante, como eram bons os fotógrafos lambe-lambes, já que não posso voltar ao passado, a máquina do tempo é apenas obra de ficção e imersa profundamente em meus devaneios,  tornei-me um lambe-lambe verdadeiro.

Com o dom que alguém me fez possuidor, o de escrever cada vez mais, deixo nas letras todas das minhas crônicas cotidianas o colorido azul cinzento, meio borrado, das paisagens nostálgicas do meu passado.

Acabei me tornando um reles lambe-lambe escrevedor. Já que não sou possuidor de uma destas máquinas de fotografia pertencentes a homens não mais existentes, os tais lambe-lambes escrutinadores testemunhas de um tempo bom que passou, deixando rastros de saudade por detrás daqueles flashes de curta duração, felizmente, como o passado me persegue, seja aqui, a escrever tanto mais, tomara essa arte não me abandone tanto menos, ao me perceber um lambe-lambe escrevedor, retratista de rica sensibilidade, tamanha que ela me transformou, deixo a vocês, leitores e admiradores não de mim, e sim do que escrevo, meu legado de um lambe-lambe que não usa máquinas de fotografias, e sim o teclado de teclas brancas enfiadas num espaço escuro, do meu exausto computador.

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