Acabei por sobrepor o mal com o bem

Sei que é difícil dar a outra face como apregoa o livro santo. Sei que fica quase impossível, ao levar um tabefe, bem aplicado, vindo do nada, naquele espaço do rosto ficou uma mancha rosada, mais e mais visível quando a pele é clara, e logo desaparece, como por encanto, deixando desencantada a pobre vítima que recebeu o sopapo. Que, refeita da agressão gratuita passa momentos de evidente consternação. Até voltar a sentir o sensível coração voltar aos batimentos de dantes. Contudo ainda taquicárdicos, podendo, no caso da pessoa sofrer das coronárias, disso resultar um fulminante enfarte, mal súbito que pode nos mandar ao céu antes da data escolhida. Que no meu caso tomara seja num trinta de fevereiro, mês nanico, de no máximo vinte e nove dias.

Mas, vivendo em sobressalto constante, nestes dias após dias quando o estresse, o sofrimento, o trabalho em demasia, sem hora para pensar no quanto a vida é bela não fossem pelas agruras que a gente passa, não se pode evitá-las, nem fugindo rumo ao mato, nem ao mar oceânico de uma profundeza tão grande que não se pode abraçá-la, todos nós, mesmo estando preparados, chega uma hora em que a gente não consegue remar contra a corrente, e ficamos náufragos de um turbilhão, quase um furacão da mesma magnitude a qual sofreu dias atrás a América do Norte, em sua parte mais ao sul.

E como profissionais da medicina são reféns da incerteza do dia após dia! Ao sairmos de casa, seja andando nas próprias pernas, cedo, antes que a coruja saia à caça, deparamo-nos, menos na clínica privada, mais premente no serviço público, com pessoas que nos procuram com dez, mais de dez, pedras nas mãos esbaforidas, naquelas salinhas tacanhas, desprovidas de recursos que a moderna medicina oferece, e, quando adentram sala adentro, como aconteceu na manhã de hoje, treze de dezembro, de fato o treze fez justiça a sua fama de agourento, fui simplesmente desacatado por uma moça de fato raivosa.

Era a antepenúltima paciente do dia. Antes dela pessoas educadas entenderam meus conselhos, e foram atrás dos exames pedidos.

Assim que ela adentrou ao meu consultório, de uma unidade de saúde de nome pomposo, leia-se Ame, trazendo junto seu filho menor, o menininho bonitinho contava com quase três aninhos, encaminhado por uma pediatra experiente para tirar dúvidas a respeito de uma fimose, facilmente redutível por manobras que eu tentei fazer na hora, com toda a paciência de um entendedor do assunto, a mãe, já preconceituosa contra médicos do serviço público, e como sofremos nós!, em altos brados retumbantes vociferou contra mim, dizendo que gostaria que seu filhote fosse operado de fimose, como se ela fosse capaz de realizar tal procedimento.

Ela não aceitou minha ponderação que o melhor para seu rebento seria massagear cuidadosamente a capinha que recobre a glande do pênis do meninozinho adorável. Para que um dia a cabeça do piupiuzinho fosse pra sempre liberta da pele que recobria a glande encapada. A operação de fimose seria postergada para depois dos quinze anos, ou mais tarde, caso fosse necessário. Sob anestesia local.

Ao sair, como uma leoa raivosa e ululante, embora do lado de foram estivessem outros a espera de atendimento, não me restou outra coisa a não ser me recolher a minha insignificância de especialista em Urologia, infelizmente militante nos postos de saúde da vida.

No ponto de ônibus, pertinho de um supermercado, da zona norte, onde sempre espero a condução, lá estava ela a falar mal de mim, aos outros pacientes que passaram pela mesma salinha acanhada.

Depois de uma vez no centro da cidade, passando rápido pelo consultório, sempre caminhando, ao passar por uma farmácia central, deparei-me com uma cena que me fez parar.

Uma senhora, de meia idade, interpelou-me com olhos doces de súplica. Ela precisava comprar medicamentos para seu filho portador de anemia severa. A quantia era mínima, perfeitamente dentro das minhas posses de momento: quinze reais.

Entrei farmácia adentro, falei ao amigo balconista, o experiente Ronaldo, que a ela cedesse o xaropinho exigido para amenizar a anemia do seu pimpolho.

Saí da farmácia pensando nos prós e contras da vida. Sobre dar a outra face. Ainda pertinente ao título do meu texto de agora a tarde.

Fui destratado horas antes. Por outra fêmea, uma leoa deseducada, das tantas feras não enjauladas que perambulam nesta selva de pedra onde vivemos aos sobressaltos.

Já antes do almoço, ao subir a rua rumo a minha casa, ao assistir o pedido da mãe desconsolada por não poder comprar o remédio do seu filho, e eu pude ajudar no que podia, era bem pouco, foi que me passou pelas lembranças sobrepor o mal com o bem. E como ele me fez tão bem!

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