Amputaram-lhe…

Disse Carlos Drummond de Andrade: “era meu avô já surdo querendo escutar as aves pintadas no céu da igreja”.

Quem tem as duas pode viver, embora manquitola, com apenas uma delas, já que a outra virou história, exibida num passado remoto, no velho álbum de fotografia.

E o que tem a ver o dito do grande Itabirano poeta, com amputação, coisa que muita gente se vê, de repente, refém tão somente de uma das pernas? O tal avô, surdo, talvez portador da doença de Alzheimer, ao adentrar a capela Sistina, olhando pro alto, admirado, percebe, no cenário magnifico, tinto por Michelangelo, já bastante caduco, aves cantando, um canto lírico. O tal idoso, vetusto senhor, amputado do seu juízo perfeito, pode perfeitamente confundir gelatina com uma tina vermelha, na qual caiu por descuido.

As amputações são cirurgias cruéis. Na maior parte das vezes necessárias. Tanto podem salvar a vida do pobre senhor, que tanto pode ser um jovem rapaz, ainda em idade metade da metade da minha, ainda quase em cueiros, quando concorrem para a infelicidade, causa importante de depressão, quando da sala de cirurgia dali sai um paciente andando quase virilmente, saindo dali faltando algo em seu corpo antes pleno de saúde poder-se-ia dizer perfeita.

No meu metier, de urologista praticante e caído de amores pela especialidade, algumas vezes fui obrigado a amputar parte do órgão genital do homem. Quando a amputação foi total, no caso de um câncer já avantajado, o resultado quanto à relação sexual é desastroso. No cômputo geral, no caso de câncer de pênis inicial, restrito a glande do órgão, de dupla função, tanto serve para urinar quanto para copular, o sexo ainda se torna satisfatório, quase como dantes.

Caso tenha de escolher, em meu juízo perfeito, não vítima de doenças que desfazem-nos o que restou da memória, tendo de eleger qual parte do corpo tenha de retirar, por favor, nunca minha opção seriam os dedos das minhas mãos. Através deles teclo o teclado escuro dos meus computadores, comandados por ordens que vêem de cima, do andar superior, por sobre o pescoço curto do qual sou portador.

Hoje, ao descer a rua, depois de um lauto almoço, do lado direito, pelo passeio cheio de pessoas em seus ir e vir, deparei-me com um rapaz amuletado.

Era claro e obeso o tal. Faltava-lhe a parte inferior da perna direita. O que se via, e nele se deduzia, é que fora amputado em operação recente. Pois uma faixa de crepom ainda se via enrolada no coto que sobrou abaixo do tornozelo.

Existiam sinais, aos que exercem a medicina mais evidentes, que a amputação foi feita por problemas circulatórios, já que veias azuis se mostravam mais acima, perto do joelho ainda presente.

Não tive como refrear meu ímpeto de perguntar a ele qual a sensação de ter, recentemente, parte do seu eu jogado no lixo.

Foi quando o jovem simpático, resiliente ao sofrimento que para mim seria bastante pungente, quase irreparável, insuportável, testemunhou-me, eloquentemente, numa voz suave, quase um sussurro sem dor: “de fato perdi parte da perna direita. Foi há uma semana apenas. Em verdade, como o senhor, doutor, deve ter pensado, foi por causa circulatória, já que eu, num descuido, me descobri diabético, por tal razão fui amputado. Mesmo assim, aliviado de um peso morto, já que minha parte de baixo da perna nada mais significava para mim, era apenas causa de dor e sofrimento, cheirava mal inclusive, agora, mesmo manquitola, mal me acostumando à invalidez parcial, tento ser feliz, e finjo que sou”.

Deixei-o entregue aos meus devaneios. Caso tenha de amputar parte de mim, que não comecem pelo andar de cima. Nem pelo intermediário. Pelas partes pudendas, na idade em que estou agora, pouca falta me farão meu órgãos genitais. Se a escolha passar pelas pernas, não! Talvez sem elas eu não viva. Não poderia correr. Nem caminhar. Amputando-me os dedos das mãos, quem sabe se com a metade deles, tendo meu cérebro undécimo da fecundidade a qual possuo agora, não seria uma má ideia deixar acontecer tal imprevisto imprevisível.

Mais abaixo, já onde estou, no consultório, nesta sexta-feira metade do mês de setembro, já que tenho de escolher qual parte de mim a perder, não tendo outro caminho, suplico-lhes, quase em lágrimas múltiplas. Não amputem meu tirocínio…

Deixe uma resposta