Ali jaz insepulta parte indissolúvel de mim

Quantas e quantas vezes passei pelo cemitério, onde apenas estavam eu e minhas lembranças tardias, parentes especiais, pai, mãe, um irmãozinho do qual não me lembro, de tão criança era eu, parti em visita a um túmulo, dois, orei um cadinho, confesso que na igreja não paro tanto tempo, supliquei pela minha saúde, a dos meus, pela de outros necessitados também, dali saí entregue as minhas lembranças, tantas que são, mugindo de saudade daqueles entes queridos, que ali descansam em paz.

Se pudesse sepultar ressentimentos, afogar lamentos, guardar, nos anos que me restam, dentro de meu cérebro irrequieto, apenas e tão somente fatos retratos que me fizeram bem, confesso eu os trancaria dentro de um baú de guardados, jogaria a chave mestra fora, enterrada no pé de uma jabuticabeira recém-plantada, por mim mesmo, na intenção, tomara seja factível minha intenção pura, de desta mesma árvore que tarda produzir frutos, saborear junto ao meu neto seus frutos doces que inda hoje, decano que me tornei, me faz salivar de tão doces que eles são.

Se me fosse permitido deixar sepultas mágoas, rusgas tantas, equívocos cometidos por julgar apressado, grosseria cometida com algum interlocutor que porventura tenha magoado, erro de diagnóstico que da minha pressa tenha sido feito, algum lamento que tenha, por causa de alguma reprimenda intempestiva, provocada por meu desatino por ainda não mais ser menino, e como gostaria de voltar a sê-lo, nem que por alguns momentos fugidios, se me fosse facultado voltar a outra universidade, que não a de medicina, estudar aplicadamente outra que tratasse com mãos de luva de pelica fininha a nossa língua portuguesa, a qual amo tanto, e por vezes cometo atrocidades com sua linda imagem, e me tornasse deveras doutor em letras, pós-graduado em literatura pura, entre elas uma especial, referente a linda língua portuguesa, última flor do Lácio inculta e bela.

Sei que no campo santo existem lápides frias, ou quentes sob o calor do sol, que neste dia dezoito de setembro se faz notar com sua presença amarelo ouro, ali dormitam tantas pessoas boas, más convivem mortas com outras de índole amenas, naquele lugar santificado, pra mim oratório mais procurado que o interior das igrejas tantas nas quais nos são oferecidos espaços amplos para que ali fiquemos instantes tantos para que reflitamos sobre a vida que levamos.

Aqui, no espaço onde me sinto tão bem, em meu consultório onde chego bem cedo, a escrever sobre o cotidiano tão rico quanto o velho Onassis, abastado grego, que deve estar enterrado em algum cemitério de vista linda, em sua Grécia dos deuses tantos que ali viverem, e nos ensinaram tanta sabedoria, nem uma ínfima parte dela sou capaz de amealhar em toda a minha errática vida.

Caso me fosse permitido escolher, um lugar para me despedir da vida, o quão linda ela se mostra em todos os dias, ensolarados como o de hoje, chuvosos como doutros, seria com certeza aqui, neste sétimo andar, cercado por um silêncio prematuro, a partir das oito esta mesma paz é quebrada pelo burburinho dos pacientes que me procuram e a outros colegas que chegam a partir das oito da manhã.

Meu sepulcro, já que não estarei atento para assistir lágrimas chorosas a despencarem pelos cantos dos olhos dos presentes ao meu velório, desejo-o cercado de risos francos, cheio de circunstantes presentes a comentarem quão bem lhes fez ler meus escritos, passar os olhos em todos os meus livros, não sei quantos ainda mais irão nascer, já que não sei quanto tempo mais me resta antes de morrer, nem desejo saber.

Olhando, daqui de cima a paisagem que se descortina frente a minha retina, a mão esquerda principalmente, aquela rua de tantas lembranças ternas, a Costa Pereira tão mudada em seu cerne, quantas clínicas tomaram lugar das residências familiares, de tantas pessoas hoje dormindo seus sonos eternos, descansando suas angústias e tristezas, no seguidouro de vidas mais e mais vividas, foi que pensei no título da minha crônica desta segunda-feira linda, prenúncio de uma primavera colorida.

Ali, mais abaixo, a alguns metros apenas do meu lado esquerdo, naquela rua tão cara a mim, e a outros que ali deixaram parte deles, jaz insepulta parte maiúscula de mim. Minhas indissolúveis lembranças, enfim…

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