O homem que vivia na ilusão

Ele, com apenas três letras no nome, Ele mesmo assim foi batizado, nasceu de favor, sem o desejar, num lar desestruturado. Nem sobrenome dispunha. De tão singelo que lhe era o lar. Se aquilo pudesse ser chamado de lar…

A mãe, ignorando quem era o pai, pois se deitava desde o padeiro madrugão, ao leiteiro embrulhão, até com o pároco não muito santo de uma paróquia vizinha, a danada da moça até que bem formosa tinha relação. E eram fugazes como a chuva de verão. Sempre encobrindo a cara, a desavergonhada moçoila, conhecida nos arrabaldes como “dona do rabo quente”.

O pai postiço de Elezinho era tão vagabundo como um cão vadio. Vivia num bar mal frequentado, lugar de delinquentes e drogados. E ele não fugia à regra.

Elezinho cresceu igual a uma criança nos tais chiqueirinhos. Confinado como boi sem engordar. Sem brinquedos com os quais brincar. Sem amiguinhos a quem se queixar.

Mas cresceu. Ficou, aos vinte anos, comprido como um coqueiro que já deu cocos. Na escola, quando menor, era chamado de girafinha de pescoço alongado.

E era boa pessoa, embora cercado de gente ruim, o pobre infeliz Elezinho, depois ficou reduzido a Ele mesmo. Só.

Era esperançoso o jovem rapaz.

A todas as agruras respondia com um sonoro: “vai melhorar”! E nada de a melhora acontecer.

A rotina enfadonha, de nãos em nãos, quando procurava emprego, uma colocaçãozinha que fosse, mesmo recebendo migalhas, gorjetas dos frequentadores, quando foi garçom, absolutamente não o desanimava.

Ele perseverava na doce ilusão que um dia tudo iria mudar de cinzento a amarelo, de verde desenxabido a verde pasto depois de uma chuva tão esperada. Quando tudo parecia perdido. Para ele enchente, que tudo levava de roldão, era um pequenino ribeirão que nada tinha de caudaloso. E até imaginava, naquela tragédia anunciada, vendo todos os vizinhos perderem tudo, levado pelas águas fétidas, que ali nadavam lambarizinhos de rabinhos vermelhos, e os pescava num faz de conta pura ilusão.

Ele, aos trinta anos, completos naquele setembro agônico, primavera anunciada, vivia feliz, dentro da sua infelicidade.

Ele não se queixava de nadica de nada.

Quis o destino que um dia, já quase quarentão, Ele veio a se enamorar de uma moça de fino retrato. Digo fino, pois o retrato era um três por quatro, feito de lado, para economizar no pago.

Acontece, assim que nasceu o primeiro rebento, prematuro, parto feito às pressas via SUS, quase a criança, de baixo peso, anemiada e infectada pelo vírus do HIV, aos doze anos, quase não chegou a esta idade, foi-lhe diagnosticado ser ela autista.

Era uma menina com traços normais. Branca como bola de neve, sardentinha, cabelos crespos e escuros, magérrima.

Na escola sofria com a repulsa dos coleguinhas. Ele, já separado da mulher, tentou inserir a filha numa turma normal. Embora soubesse da deficiência a olhos vistos da filha autista. E como era irrequieta a Flavinha! Não parava um só minuto.  Quando se pensava que ela ia dormir a insônia a fazia ficar de olhos esbugalhados, cantando antigas cantigas de roda. Quando todos pensavam que Flavinha fosse comer, ela cuspia no prato que comia.

Ao procurar ajuda na promotoria pública, para que sua filha única tivesse a ajuda de um cuidador, na escola, foi-lhe negada a autorização. Sem nenhuma explicação.

E Ele vivia, e revivia, na esperança de que a filha amada um dia fosse uma menina normal. Mas nada era normal em sua desprovida de cores vivas.

Foi quando passei por Ele numa rua de minha cidade.

Encontrei-o em postura reflexiva. Mãos ao queixo, tez crispada, olheiras profundas sulcando-lhe o canto dos olhos roxos. Tudo fazia crer que Ele passara noites em claro, embora tenham sido noites escuras.

Não tive como não parar defronte a Ele. Em seguida, unicamente no propósito de oferecer-lhe ajuda, indaguei qual a razão da sua atitude ali demonstrada de inquietação.

Tomei cautela para não parecer enxerido e perguntão. Sabia, de antemão, o estado lamentável de sua desarvora infelicidade, tendo a filha como maior motivo de descabelo. E Ele nem cabelo tinha mais.

Foi quando de Ele escutei a resposta, a minha indagação: “quer saber? Eu, chamado Ele, vivo rodopiando ilusões. De que um dia minha filha vai ser tratada por um psicólogo capaz e vai ser curada da sua enfermidade. Vivo sonhando que minha vida, de um rosário de momentos ruins, se torne um canteiro de rosas azuis, margaridas brancas de miolo amarelo. Vivo não em sobressalto. Sabe qual a razão? Pois vivo de ilusão em ilusão, com o peito recheado de sensações ilusórias. Caso contrário não saberia o que vai ser de mim. Por isso sou assim”.

Tomara Ele não perca a ilusão. Pensei comigo mesmo, na minha contramão.

 

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