Jhully e aquele olhar de desconsolo

Aquela linda menina, nascida num distante janeiro, de mãe diminuta, e pai menor ainda, nunca foi uma boa aluna. Embora inteligente, olhinhos vivos, pele morena, boca pequena e pernas lindas como o canto do pintassilgo, seu único amiguinho desde que aprendeu a cantar.

Assim que os anos a ela conferiram idade para sair de casa, carregando às costas uma pesada mochila, no exato momento de pegar uma vã, transporte que a levaria a escola, era a primeira vez que o fato se dava, Jhully empacou, só não emburrou pois o pai, condescendente, permitiu que a menina ficasse em casa, desde que ajudasse a mãe nas tarefas da casa.

E como a pequena Jhully ficou contrariada! Lavar louças, estender a cama, passar uma vassoura peluda naquele assoalho gasto pelos anos, colocar a roupa suja da semana na máquina precisando de uma nova, absolutamente não lhe eram do agrado. Antes tivesse embarcado naquela perua, uma Kombi que nem por isso poderia ser chamada de transporte escolar.

Na manhã seguinte, com a melhor cara do mundo, entrou na vã, tomou o assento junto ao motorista, onde não era permitido. Mas, fazendo uma carinha de muxoxo, conseguiu ver sair vencedor seu intento.

Uma vez na sala de aula, um tanto desconfortável, se olhou no espelho do fundo, aquele que foi trincado por uma bolinha quase inocente atirada de chofre por uma aluna mal comportada, e a ele perguntou: “espelho espelho meu, existe alguém nesta sala de aula mais linda do que eu”? Não precisa dizer que a superfície espelhada emudeceu.

Jhully viu anos passar, meses não deixarem saudades por detrás, e, de repente, se viu no final do curso médio, sem nenhuma intenção de continuar os estudos, pois nada queria com os livros, muito menos com os cadernos. O que mais a Jhullinha apreciava era ficar à-toa. Olhando deslumbradinha os passarinhos cantarem na linda árvore de flores amarelas a frente da janela da sala de aula, a mesma do espelho trincado, que não lhe respondeu a pergunta sem propósito.

Aos quase vinte anos, já de namorado a tira colo, se deixou desvirginar aos dezesseis, por ele mesmo, até então o único homem da sua vida, com ele gostaria de passar o resto dos seus dias, casar não lhe fazia parte dos planos. Emprego ainda não lhe passara pela carteira de trabalho. Até então desprovida de assinatura de algum patrão que lhe houvesse dado a oportunidade de emprego.

Jhully era em verdade uma à-toa na vida.  Mais uma desempregada, sem a menor experiência em qualquer tipo de ocupação, sem especialização profissional, mal falando sua língua nativa, mesmo assim cometendo atrocidades com a última flor do Lácio inculta e linda.

Aos quase vinte e cinco foi em busca de trabalho. Levava, debaixo da axila recém-depilada um currículo tão miúdo, constando de menos de duas folhas, se tanto.

Não precisa dizer que as repostas eram, via de sempre: “volte na semana que vem. Talvez tenhamos a resposta a sua pretensão”.

E quando Jhully retornava não precisa repetir que a vaga já fora ocupada, por uma garota aplicada, que fora sua colega na mesma escola, do mesmo espelho espelho meu, que ignorava a sua pergunta se existia alguém mais linda que a Jhullinha.

Ainda com o mesmo rapaz, aquele peguetizinho que a fez mulher numa moita de capim viçoso, com que ojeriza se lembrava daquele dia amargo, não por ter o íntimo devassado, e sim por culpa de um carrapatinho miúdo, o tal micuim, difícil de ser pilhado em fragrante delito, o danadinho deixa marcas pelo corpo todo, as pessoas alérgicas ficam coçando dias e dias depois da sua passagem.

Não havia emprego que aceitasse a pobre inexperiente Jhullinha.  A crise de falta de perspectivas de crescimento que o país atravessava, a falta de rumo que a politiquice ensejava, escândalos e mais deles pipocavam como milho na pipoqueira quente, tudo contribuía para o desconsolo da população jovem.

Os idosos, temerosos de ver adiada a tão sonhada aposentadoria, ficavam nas praças a discutirem as novas regras que tramitavam na câmara dos deputados.

Lojas vazias, comércio sem vender, autônomos sem entender a razão dos seus escritórios às moscas.

Um dia a pequena e linda Jhullinha passou por aqui. Ela me procurou depois de visitar meu site, paulorodarte.com. O mesmo que da pitacos na urologia e passa veloz pela literatura, quase uma crônica nova a cada dia.

A linda mocinha, de cabelos negros e pernas morenas, pequetita e simpática como uma linda bezerrinha recém-nascida, queixa-se de uma infecção urinária que se repetia sempre. Ainda estava em uso de um antibiótico poderoso. Mas nada de melhorar os sintomas miccionais.

Ao final da consulta, com os exames pedidos, deveria ter investigado antes a razão da volta das suas infecções, poderia ter como causa um cálculo renal, ou outra coisinha qualquer, ao ver a pequena mocinha deixar a sala, onde estou agorinha, neste dia vinte e dois de setembro, percebi-lhe, na face, mais um olhar de desconsolo.

Igual a tantos outros desempregados. Lotando balcões de emprego, distribuindo currículos, andando sem rumo, como sem rumo se mostra o nosso desgovernado país.

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