Hoje, vinte e sete de setembro, primavera em seu debut, as últimas flores dos ipês lançam ao solo suas florzinhas tímidas, descia eu todo gabola com minha carteira de sênior no bolso, a de dinheiro e documentos ficou guardada em casa, na penteadeira espelhada defronte ao meu leito, mostrando o documento plastificado, recém-renovado, a todos aqueles que comigo se cruzavam. A maioria das pessoas que passavam defronte a mim era jovem. Um deles me afiançou, sendo parceiro do meu bom humor: “um dia quero ser igualzinho ao senhor”. E eu continuei a descer minha velhice, ainda plena de saúde, aos sessenta e sete anos acabara de marcar consulta com um pediatra. Não sei o que ele vai receitar para controlar o frêmito de saúde que abunda em mim. Talvez algum xaropinho para tosse, Biotônico Fontoura para que, caso não tenha fome, aguçar-me o apetite. Como minha mãezinha fazia, nos bons tempos quando ela vivia, a me colocar de castigo por um ato falho cometido.
Esta carteira bicolor, a maior parte dela vermelha, mostra feliz um casal de idosos, melhor chamá-los de Seniores, na parte inferior enseja o nome Autotrans, uma foto minha feita na hora, e como não sou fotogênico em fotografias, como o é meu querido Theo. Mais uma palavra fica grafada nela – auto pass, nas costas algumas recomendações não lidas, por um singelo motivo: hoje em dia deixei de lado meu par de óculos. Mas as tais letrinhas da parte do verso são tão bonsaisinhas que não consigo ler tudo sem uma lupa possante.
Depois do acontecido na linda manhã de hoje foram-me inseridos aos pensamentos alguns prós e contras de estar velho. Os direitos pertinentes a nós. Os deveres também. As alegrias que nos bafejam os cabelos brancos, e a falta deles, entretanto. A falta de perspectiva de vida longa deve ser incluída nos contra. No entanto outras coisas mais ficam listadas na enorme lista dos direitos e deveres do estar idoso. Prefiro idoso, sênior, ao velho. Pois velho me traz a lembrança aquele sapato relegado à doação. Todo furado na sola, abertas as costuras, carcomido pelo andar furibundo, como faziam meus queridos avós Rodartino Rodarte e o segundo, Alberto José de Abreu.
A carteira de sênior me faculta o direito de andar de ônibus graciosamente. Logo mais, a partir de antes das dez, saio daqui, espero pouco no ponto da lotação debaixo da janela dos apartamentos da Santa Casa, assim que a condução chega, espero os que descem apearem, subo a escada sem maiores percalços, cumprimento o motorista sorridentemente, assento a um banco de dois lugares, junto a minha pasta marrom onde levo meu livro mais recente, e outras contas a pagar, e, poucos minutos depois apeio pertinho de um posto de saúde de nome pomposo, Ame, atendo os que ali estão, e volto ao mesmo ponto, entro novamente no busão, e desço alguns minutos mais, alegre por estar a hora do almoço.
No cinema pago meia entrada. Um dia uma afável funcionária do cinema, ao qual sempre vou uma vez por semana, como não trazia documento de identidade comprovatório dos meus mais de sessenta anos, a mocinha simpática buliu comigo, e ficou nesta noite aos meus ouvidos a seguinte e agradável opinião: “o senhor tem mais de sessenta? Duvido. Pela sua aparência não deve ter mais de trinta”. Não precisa afirmar que só não paguei entrada inteira assim como financiei a entrada da moça amável. Não vou dizer o final do filme, ao lado da linda moçoila que não apenas passou a ser minha namorada, como também ficou encantada com minha pessoa, não tanto velha como um sapato usado.
São tantas as prerrogativas pertinentes ao estar velho que não quero aqui, neste texto de agora cedo, enumerar tantas são. Ir ao cinema pagando meia entrada. Viajar de ônibus sem nada pagar. Gozar de lugares especiais não apenas em transporte coletivo como em estacionamentos tão difíceis nas aglomerações urbanas. Ser tratado com deferência pelos demais. Não tanto idosos como nós. Ter uma fila especial nas casas bancárias, as ditas preferenciais. Nos hospitais, no caso da saúde nos deixar caducos, quando à farmácia comparecer para comprar aquele comprimidinho azul, hoje os Viagras tomaram outros nomes, ao pedir ao farmacêutico para nos vender o tal fármaco levanta defunto, uma dúvida nos persegue: pra que mesmo ele serve?
Velhice plena, ou pela metade, de saúde, como vale a pena conviver ao lado dela! Mas, e como é bom ter um mas para um respiro, quando doenças incapacitantes na gente se aboletarem, quando um de nós tiver de viver ligado a aparelhos, sondas, stomas, em respiração assistida, dependentes de cuidadores para trocar-nos as fraldas, da gente exalando um odor pútrido, a fedentina da morte, que nos deixem partir rumo ao azul do céu azul. E se ele estiver cinzento melhor ainda. Caindo uma chuva mansa, então, que coisa boa!
O idoso, o sênior, o velho, o ancião, o em idade provecta, como queiram, têm direitos a eles intrinsecamente ligados a idade que a gente se encontra.
Um dia feio vi um velho interno numa casa de velhos. Não sei se era um asilo ou uma casa do vovô. O olhar dele me impressionou. Era um olhar perdido no meio do vazio do nada. Típico da enfermidade de Alzheimer. Saí daquele lugar pensando nos direitos dos idosos. E nos seus deveres idem.
Aquele velhinho, deixado a morte numa casa, entregue a penúria dos seus últimos dias, sem os filhos a olharem por ele, teria o direito sagrado de ser feliz?
Acredito que não. Nem mesmo esta carteirinha a minha frente, a de sênior, nos faculta este direito inalienável, de todos nós: de ser feliz. Sabedor que felicidade não é coisa plena e totalmente irradiada em todas as horas do dia ou da noite. Ela é composta de coisiquinhas pequetitas. Grãozinhos de areia fininha. Instantes apenas.
Se eu tenho o direito de ser feliz? Como velho que sou? Se digo sim, ou não, deixo a vocês o melhor julgar o que sou. E o que não…