E eu que pensava ser a última bolacha recheada de morango do pacote

Um dia um pacote de bolacha enorme, cheio pelas bocas, disse a última delas, a que sobrara no fundo: “sabe bolachinha boba. Se você se acha a última bolacha do meu pacote, saiba que as outras foram comidas antes de você. Que sobrou no fundo, e pode ficar apodrecida aí mesmo”.

Tem gente que sente a mesma coisa. Eles se julgam importantes, mais que os demais. Por esta mesma razão ficam anos e anos amargando o ostracismo, embora não sejam ostras, e sim pequeninos grãos de areia fina.

Quantas vezes eu mesmo, um tanto quanto tal e qual aquela bolachinha esquecida no fundo do pacote, pensava ser o tal, conquanto nunca fosse o maioral.

Creio que a vida, e os anos muitos vividos, acabaram por me ensinar que o fundo do pacote não é meu lugar preferido. Acabei, com a maturidade crescendo, conquanto eu não tenha crescido mais que metro e setenta, satisfiz-me em ser qualquer daquelas bolachas, desde que tenham servido de alimento a alguma criança faminta.

Hoje, dia vinte e oito de setembro, dia quente e abafado, embora ontem a noite tenha chovido um bom bocado, foi chuva de verão, e olha que estamos na primavera, como de rotina tomei o ônibus rumo a um posto de saúde da zona norte da cidade.

Ali atendi com as ferramentas parcas de que dispunha. Penso ter orientado a maioria dos pacientes usuários do SUS que ali fazem fila. Se não pude fazer mais não culpem a nós, médicos empregados da prefeitura. E sim a um sistema único de saúde fracassado.

De volta de onde vim, depois de curta espera no mesmo ponto de ônibus, defronte a um supermercado, a sombra das mais de onze horas, apeei pertinho de um posto de gasolina, já no centro da cidade.

Passeios, calçadas, deveriam ser artérias de fácil ir e vir. No entanto, contrariando nosso encanto, como as pessoas tornam irrespiráveis de andar os tais caminhos. Lá existem obstáculos intransponíveis alguns. Ambulantes com seus badulaques, pessoas em prosa animada, caçambas mal ajambradas, obras em horas impróprias, titica de cachorro pondo em risco a sola dos nossos sapatos, e coisiquinhas mais.

Foi uma caçamba enorme a causa da minha ira. Ali bati o antebraço, pois o passeio estava impedido por obra numa casinha idosa. Creio que ela tinha mais anos que os meus.

Na hora o sangue brotou como uma camélia rosa. Ficou uma ferida rasa, coisa de pele de pessoa idosa. Frágil como pétala de rosa.

Entrei, minutos adiante, numa farmácia da qual sou cliente. Onde compro meu Sonrisal de cada dia.

Ali foi feito um curativo por um balconista ágil e experiente. Na minha ferida recente foi passado um produto igual ao mertiolate. O “dodói” ficou novo em folha, embora eu não seja tão novo assim.

Uma vez em minha casa, raivoso pelo transtorno que a caçamba me provocou, embora o machucadinho tenha sido nada mais que um reles esfolão, pensei mais uma vez na bolacha no fundo do pacote. A que se achava a mais importante dentre as suas irmãs.

Imaginei-me escrevendo, com a pena pesada, malcriadamente, sobre as caçambas ameaçadoras. Foi então que o telefone fixo tilintou.

Era o porteiro, o amável profeta Valdeci, dizendo que meu amiguinho Donatelo queria falar comigo.

Em menos de dois minutos lá estava ele. Magérrimo, assustadiço, ansioso como nunca o percebi.

Pra quem não conhece o Donatelo apresento-lhes agorinha mesmo. Ele é uma mistura de ET com coisa boa. Gênio da informática, ótima pessoa. Que tem a sua Julieta como eu tenho a minha Rosa. Estudante de uma escola estadual, bem no centro da cidade. Donatelo estuda no período da noite.

Acontece que o bom menino, apesar de colecionar seus vinte aninhos, mora com a mãe legítima e um pai postiço. O pai genético o abandonou quando ele tinha apenas três aninhos.

Na semana que a folhinha arrancou, por motivos secundários, Donatelo levou duas tundas de um grupelho na porta da escola onde penava a anos vistos. Um colega de sala, amigo real, no que tentava apartar a briga acabou por apanhar mais que cachorro vadio.

Foi feita a ocorrência policial. Como de vezes anteriores.

Donatelo almoçou junto a minha família. Que apetite voraz ele tinha!

Já era quase uma da tarde quando me despedi do meu amiguinho sofredor. Escutei-lhe os queixumes calmamente. Pouco pude fazer para consolá-lo. A não ser oferecer-lhe meu ombro amigo.

Agora, já com minha ferida parcialmente sarada, resta apenas uma mancha, quase cicatriz, da lesão feita pela caçamba mal colocada, volto a pensar na bolacha, a derradeira no fundo do pacote de bolacha.

E eu com meus pequenos problemas! Ainda me descabelo frente a eles.

No caso do querido amigo Donatelo, com a carreta cheia de atropelos, tantos que são, volto a lembrança a tal bolacha deixada no fundo do pacotão, a que se achava a tal.

Eu com meus senões não sou a última das guloseimas. Pelo menos tentarei não sê-lo.

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