Num dia de luto fechado, em toda a comunidade rural, por causa da morte de um pastor, tido como milagreiro, Juquinha, garoto ladino, hiperativo de berço, por conhecer a situação aflitiva da sua família, gente da roça, onde não chovia fazia anos, mais alguns meses, o açude secou. A pastaria ficou vermelhinha, por causa de um incêndio criminoso. As vacas magrelas, costelas de fora, acabavam atoladas no brejo da desesperança naufragada.
Num feio dia a família do Juquinha, assistindo impávidos à penúria por que passava a região, a grave crise que grassava no lugar, foram de carona no velho caminhão leiteiro, meio cambeta pelos pneus mais calvos que uma bola de bilhar à cidade perto. Apesar de que o perto não era tanto assim. Foi uma viagem maldita. Quase cinco horas comendo poeira. Chegando à cidade na azáfama da hora de pico. Com mais gente acotovelando-se nas ruas que carrapato micuim a infestar a pastaria seca da entressafra.
Uma vez apeados da carroceria da lata velha que ainda levava leite, todos os quatro, o pai de Juquinha, a mãe idosa, a pobre nunca foi vaidosa, embora tenha sido formosa quando mais moça, o irmãozinho de mais ou menos seis aninhos, e o personagem central da minha história, ou seria isso conto? Deixo a vocês, leitores, a conclusão do que se trata este escrito, agora em sua metade. Dividido ao meio.
Não tendo onde ficar a família, o pai de Juquinha era adepto de uma religião extremada. Uma que acredita num ente superior que do alto governa o embaixo com mãos de ditador.
Ele levava a bíblia debaixo do braço forte. Todo vestido num terno escuro, da cor do urubu caído num balde de piche. E impelia a família toda a proceder como ele próprio, sem tirar nem deixar de por.
Ao culto, num lindo tempo quadrangular, construído graças às doações dos fiéis, assim que a família se estabilizou um cadinho, deixaram o oco do viaduto onde passaram os primeiros dias, à revelia da chuva e da inclemência do sol, e acabaram vivendo, de favor, num cortiço com fama de violento, onde balas perdidas achavam algum rebento, não deixavam de comparecer todas as noites.
Ali oravam aos pais de santo. As coisas ruins deveriam ficar de fora. As oferendas eram tantas que enchiam o saco estendido a todos os fiéis na hora da reza. No lado da entrada da grande sala eram vendidos pedaços de pano sujo como se fosse tecido da roupa que o filho de Deus usava no descimento da cruz. E água da enxurrada como sendo benta pelo papa que já morreu.
Mas a crise ainda lambia furiosa a vida da família pobre do menino Juquinha.
Despejados do pequeno cômodo onde moravam de favor pelo proprietário rancoroso, sem terem aonde ir, não lhes restou alternativa senão voltar ao oco do viaduto velho conhecido. Agora dividido com outros sem tetos. E quando a chuva voltou ao secume do pasto o lugar onde passavam a noite virou um charco alagadiço. Cheio de baratas e ratazanas esfomeadas.
O que fazer frente à crise feroz que no país gritava alto? O pai do garoto fazia bicos. Ora era servente de uma obra que acabou parada, ora foi ser serviços gerais onde nada tinha para fazer, a não ser amigo do ócio.
A situação ia de mal a pior. Juquinha, o que cuidava do irmão menor, gente boa, de boa, acabou sendo expulso da escola, não por culpa dele, e sim dela. Por ser uma escola pública, o Estado, sem recursos, achou por bem incluí-la nos cortes que a pasta da educação, a mais sacrificada, foi a que em primeiro lugar foi fechada.
De repente, para complicar a situação, pior não poderia, a mãe do Juquinha caiu gravemente enferma. E pelo SUS nada poderia ser feito, dada à verba exígua, mais uma providência equivocada tomada pelo desgoverno que pensava dirigir-nos o país.
Com a despensa vazia, tendo mais uma vez de se mudarem de debaixo do viaduto, para onde?, não sabiam, restou o espaço do grande templo, pra onde iam frequentemente, acabaram ali morando.
Foi num domingo que sucedeu o epílogo do meu conto.
No exato momento que os coadjuvantes do pastor malfeitor passavam a sacola vermelha, todos bem trajados em terno e gravata da mesma cor da camisa, se não me engano era vermelha, da cor exata de um partido político hoje caído em descrédito, o irmãozinho novinho do responsável Juquinha, que nunca havia visto tanta grana junta, passou a mão em duas sacolas, e as levou a sacristia.
Até hoje não sei qual a importância da soma angariada naquela noite enluarada. Sei que foram alguns mil reis. Alguns tostões furados.
Neste ano de dois mil e dezessete, setembro agonizando, soube do porvir infausto da família do menino, não mais menino, Juquinha.
Hoje todos eles, pai, a mãe morreu por falta de internação debaixo do mesmo viaduto, o irmão larapiozinho, já rapazinho esperto, e o desinfeliz Juquinha, amargam penitenciária para presos perigosos. Em celas onde caberiam quatro, e agora nelas residem mais de oito.
Foi quando pensei com meus senões. Que crime eles cometeram? De que a corte poderia acusá-los? De terem afanado, num dia de desassossego, a féria do tempo safado? Ou de não serem colarinhos engomados? Por esse mesmo motivo até hoje desconheço quanto tempo mais irão ficar entre grades.
Ao ver o navio soçobrar, salvem-se quem puder…