Ao chegar a minha cidade, nos idos anos de 1977, depois de uma ausência particularmente sofrida, por motivo forçoso devido à idade, caso pudesse jamais cresceria, adulto me tornaria, o ancião deveria esperar mais que o tempo passar.
Aqui retornei da Espanha com a mala cheia de sonhos.
De colocar em prática as novidades da Urologia, operar tantos quantos pacientes da minha ciência precisassem, inserir saúde onde a doença havia entrado. E como consequência de um trabalho bem feito construir um patrimônio respeitável.
Não diria que foi a ganância que movia meu bisturi. Ou que foi desejo de comprar tudo que o dinheiro desse conta de adquirir. Ou se fora aquilo que os médicos em começo de carreira tentam conquistar, a duras penas: enfrentando plantões intermináveis, submetendo-se a salários vis, expondo-se à execração da mídia, naqueles idos anos já era assim.
Mas, como consequência natural de um trabalho bem feito os dividendos se mostravam. Naturlich, com trema no u, como dizem, naturalmente, os alemães.
De começo construí uma casa enorme que daqui se deixa ver. Parece uma eternidade os tempos quando a edifiquei. Hoje, já velha, alugada há tantos anos, carece de ser reformada. Que bom se a gente pudesse ser remoçada, de velho alzheimerético voltar a ser novinho e lindo como meu netinho Theo.
Ao tempo do casamento morava nas cercanias do mesmo bairro. Numa casa deixada como herança do meu saudoso pai.
Mas, logo que os dois filhos apareceram para coroar nosso consórcio de não apenas mais dois bem como de mais alegria, precisávamos nos mudar para um espaço maior. Já tinha o lote, comprado à prestação antes da formatura. Naquela escola de medicina da Avenida Alfredo Balena, na capital do meu estado. A linda, e como era aprazível a Belo Horizonte que conheci, no distante 1968. Hoje ela não me causa asco. Nem desprezo. Muito menos ojeriza. Mas Belô não é mais como naqueles ricos anos. Não anos endinheirados. Conquanto fossem anos de puro deleite. A explicação para tal sentir se chama mocidade. Pura verdade.
Depois de casa trocada, filhos na escola, garotos bons eram eles, mais uma aquisição me marcou a existência. Pensava, equivocadamente, que todo médico poderia ser fazendeiro. Logro meu.
Passei anos e anos levando prejuízo na lida com vacas leiteiras. Talvez por desconhecer o porquê de o leite ser branco e a vaca ser negra, a razão da vaca de três tetas dar menos leite que a de quatro perfeitos, de não saber reconhecer a boa produtora de leite pela veia que lhe percorre o úbere, de fazer catiras erradas e delas levar manta, depois de anos longos tomando prejuízo, num lindo dia tive uma ideia genial.
Passei a encrenca da pequena fazendinha a um amigo de anos antigos. Já havia sido padrinho de casamento do hoje arrendador do meu pedaço de chão. Com sua amada dona Lúcia.
Hoje sou mais feliz. Não por que tenha aprendido a razão de o leite ser branco e a vaca ser preta. Nem de reconhecer o motivo de a ruminante de quatro peitos produzir mais que a que perdeu uma das tetas. E sim pois, quando para ali vou, é na intenção de chupar as jabuticabinhas maduras. Ouvir o grito esganiçado do jacu piando. Os as maritacas grasnando. Ou assistir, como se fosse capaz de correr como elas, as seriemas em par correndo como notícia ruim, como um dia afirmou o compadre Nicanor.
Inda pouco, como ali não tenho pouso, na minha casa Amarelazul mora o amigo Roberto, estou prestes a concretizar mais um devaneio meu. Uma casa beira lago da represa do Funil está prestes a ser terminada. Na fase chamada de acabamento. Diria, com mais acerto, que o tal acabamento acontece comigo. Cada vez que olho como andam as minhas exíguas finanças levo um susto. Não há carteira que resista.
Inda agorinha mesmo a chuva, tão esperada pela boa gente da roça, acaba de dar o ar de sua graça.
Chuva e construção não combinam. Pelas goteiras imensas que o telhado mal feito produz. Pela estrada sempre barrenta, onde atolam não apenas as minhas esperanças de a tal casa ficar pronta bem como fica no meio do lamaçal quem se atreve a ir ali.
Hoje foi um daquele dias de muito trabalho.
Antes das cinco da manhã já estava a caminho de outra represa, a de Camargos. Onde nasceram há coisa de um mês cinco cãezinhos, filhos do Border Collie Pirunguinha e da linda mamãe Laika Rosa. Tenho as suas imagens gravadas no meu i-phone sete.
Já antes das sete outra coleção de água doce me viu chegar. A tal fazendinha alugada, da casa Amarelazul, cenário do romance Madest.
A linda casa nova, por acabar, goteirava a goteiras vistas. A varanda espaçosa parecia um brejo igualzinho aquele onde morava a saracurinha insatisfeita, que um dia se deu mal ao se mudar para a cidade perto. As duas sacadas, com gesso na parte de baixo, alagadas estavam. Apenas um pedreiro, o excêntrico Mario, que especializou-se em fazer fogão a lenha, ali estava a arrematar a escada que unia os dois andares.
Fui, molhado até a alma (como seria uma alma molhada?), por quatro vezes andando da casa Amarelazul até o Solar Paulo da Rosa. Encharcado mas ainda não desanimado por completo.
O desânimo final estava por acontecer.
E tome chuva, aquela de fazer ribeirãozinho se coçar, saracura se incomodar, cão vira-lata sacudir a capa, e outras coisinhas mais.
Na minha derradeira volta a casa onde morava o amigo do qual fui padrinho de casamento, como chovia a quatro cantos, o pobre motorista do caminhão transportador de leite acabara de atolar os pneus na estradinha morruda que vai do curral, da salinha onde mora o tanque de expansão, à porteira de jacarandá que nunca se fecha. Principalmente aos amigos.
Mais uma vez Roberto foi convocado a guinchar o pesado caminhão ao alto da estradinha barrenta. E eu fui junto, como se desse conta de ajudar em alguma coisa.
Retumbante sucesso na difícil empreitada. O caminhão do lacticínio conseguiu chegar lá em cima. Todo enlameado, mas feliz.
Depois de tantos atropelos, de tanto desassossego, eu, já quase ancião decrépito, embora ainda capaz de correr mais de cinquenta quilômetros, falar seis idiomas quase como eles, os estrangeiros, ter escrito quinze livros, véspera de nascer mais um – Por quem os sinos não dobram, de ter criado uma família não mais filhos cangurus, pra que tanto trabalho, tamanha correria?
É mais um pra que dos praqueres. Pra que tanto? Se nem mesmo sei quanto tempo de vida me resta?