Sinto-me responsável

Quem ainda não sentiu sobre os ombros o peso da responsabilidade?

Só aquele que viveu num lugar desabitado, numa longínqua planície, longe de tudo e de todos, sem vizinhos, sem amigos, sem afeto ou desafeto, distante da realidade, por vezes cruel das grandes cidades, nestes tempos difíceis, onde a disparidade social não apenas nos agride os sentimentos, mostrando, em cada esquina corpos estendidos numa calçada dura, faça frio, enregelante, como amanheceu neste onze de agosto, agora o sol tenta aquecer o entorno, embora, até no presente momento não o tenha conseguido, cada um de nós deveria ser responsável não só pela própria família, fechando os olhos e os sentidos aos pobres que tentam sobreviver, isso não considero viver, às custas de migalhas, de sobras poucas que cavoucam no lixo, restos, dejetos, os quais deveriam ter outro destino- um lixão qualquer, um aterro sanitário, onde urubus procuram carniças, pútridas, fétidas, por não terem olfato que os livrem de sentir qualquer tido de odor, ou fedentina que emana, com seu cheiro nauseabundo, de amontoados de lixo, podriqueiras tamanhas que saem de nossas casas, e são recolhidas por aqueles verdadeiros heróis anônimos, os garis do lixo.

A responsabilidade a tenho como um tipo de virtude nem sempre compartilhada por todos os seres viventes.

Tomar a si a incumbência, de não apenas ser esteio da própria familia, ensinar aos filhos maiores que um dia terão de deixar o ninho, aprenderem a alçar o próprio voo, e avoarem, num dia incerto, terem suas ocupações, que sejam dignos de ostentarem o sobrenome com que foram agraciados ao nascimento, constituir a própria prole, e assim irem caminhando a frente, sem retrocesso, fazendo-se exemplos dignos de como meu saudoso pai me ensinou.

Ainda as lembranças daqueles verdes anos me acompanham.

Era médico recém chegado da Espanha. Foi no distante, quase inalcançável, ano de um mil novecentos e setenta e sete.

Agora reconto nos dedos quarenta e cinco anos desde quando aqui passei a exercer a medicina. De agora a três irrisórios anos completarei cinquenta anos de graduado. Muitos de minha turma acredito terem sido intimados a praticar sua arte nos céus, de uma azulice cegante, que no dia de hoje se mostra.

Meu pai, já prestes a completar seus quase setenta e sete, um cadinho menos, recaiu-lhe sobre os costados uma avassaladora enfermidade.

Tudo começou com lacunas de memória. Ele estacionava seu Ford Ka, um antiguinho veículo de cor cinzenta, em qualquer espaço. Fosse num estacionamento proibido. Ou no meio das ruas. Sob o risco calculado de ser guinchado para um pátio, onde permanecem carros delituosos, a espera que seus verdeiros proprietários paguem as multas, ou deixem, definitivamente os automóveis a serem leiloados num futuro próximo.

A doença que nele fincou as garras foi se agravando, paulatinamente, até a consequência final. Meu pai era um exemplo de dignidade, confiabilidade, hombridade, dedicação à familia, inigualáveis.

Agora, tempos depois do seu passamento, este dia triste me acompanha até no momento presente, muitos que o conheceram me param nas ruas, e dizem admirados com a nossa parecença: “como você se parece com seu pai. Foi ele mesmo, quando gerente da agência do Banco do Brasil, ainda jovem funcionário, antes de galgar o cargo máximo na sua carreira vitoriosa, quando fui a esta mesma casa bancária, endividado, precisando de um empréstimo. Seu pai me acolheu, cordialmente, em seu escritório modesto, cujas portas não se fechavam e, com um sorrido na face chamou o outro funcionário à sua sala, e pediu que ele atendesse as minhas súplicas, sem ao menos exigir uma nota promissória, uma garantia qualquer, que, no caso da minha fuga ou até mesmo inadimplência, não ficasse em aberto a soma graúda que levei no meu embornal antigo, que trazia dependurado no pescoço.  E, até hoje sou eternamente grato ao seu pai. Pessoa a quem admiro como poucos. Desde aquele dia quando fui procurá-lo no Banco do Brasil”.

E, não tive como segurar o meu contentamento ao ser comparado ao meu querido progenitor, o qual, logo ao se aposentar, em Lafaiete, cidade próxima à BH, teve início outra atividade, entre processos e leis, na dura profissão de advogado. A mesma que meu filho maior se imiscuiu. Oxalá ele tenha vida longa e produtiva. Como, infelizmente não aconteceu ao seu avô.

Quando ainda morava no bairro Centenário, onde minha pequena jornalista foi criada, meu filho Stenio já havia se mudado de endereço, e meus pais residiam na Costa Pereira, naquela casa hoje a espera de uma nova construção, que caminha a compassadas lentas, a minha mãezinha, a dona Rute Rodarte de abreu, naqueles tempos não existiam cuidadores de idosos, ela me chamava, ao telefone fixo, que eu, imerso em distintas cirurgias, nos três hospitais que antes existiam, eu a acudisse, não sei por quantas e incontáveis vezes, que a ajudasse a levantar meu pai do chuveiro, pois ele havia caído e não conseguia se por a prumo.

Infelizmente, por culpa única de circunstâncias alheias à minha vontade, que era estar lá, pronto a ajudar, não podia deixar o paciente ainda sem fechar a incisão. Sob o risco calculado de ter de fechar-lhes os olhos, e ver a morte chegar àquele corpo ainda vivo, quando deveria tê-lo salvo.

Não fossem os velhos amigos do LTC, ignoro o que teria acontecido ao meu pai. Ou a minha mãezinha amada, sem forças ou capacidade de novamente recolocá-lo ao leito. Onde ele veio a falecer nos meus braços de médico.

No dia em que eu vier a faltar, peço, suplico, aos meus descendentes, meus filhos ainda presentes, que sejam os meus queridos amados netinhos, por obséquio. Não me joguem, como se fosse um saco preto de lixo, numa casa de idosos. Me permitam fechar os olhos em companhia de todos os presentes. Ou na minha linda casa à beira da represa do Funil, ou atirem as minhas cinzas cinzentas, incineradas numa fogueira das festas de São João, o tal santo casamenteiro, num mar azul ou esverdeado como os olhos da minha mãezinha Rute.

Somos todos responsáveis pelo porvir daqueles que nos criaram. Nunca abandonem seus pais. Acolham a todos nas suas moradas. Para que, quanto eles partirem, não se arrependam de tê-los deixado morrer num asilo qualquer…

 

 

 

 

 

 

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