“Para de construir”

Como a gente, quando ainda jovem e crente, ao chegar numa cidade diplomado. Depois de anos e anos de estudos seja naquela ou naqueloutra profissão.

Enveredamo-nos de corpo e raízes no trabalho. Trocando noites insones por dias em claro. Em plantões que varam noites adentro. Sem direito a pregarmos os olhos.  E olheiras aparecem em nossos sobrolhos. A fadiga toma conta da gente. E, de tanto atendermos nossos pacientes acabamos nos esquecendo da gente. Tal o nosso envolvimento na lida diária. E como se fosse apenas durante dias as noites se sucedem atabalhoadamente. E a rotina nos massacra covardemente. Não nos deixando tempo para o lazer.

E nós, médicos em início de carreira, pensando apenas em ajuntar migalhas, não nos preocupamos em encontrar a felicidade. Já que ela não se mostra em roupagens como desejaríamos.

E o trabalho insano nos consome. Envelhecemos sem tempo de olhar os ponteiros dos relógios.

E eles avoam como andorinhas em formação alada. Sem sabermos o que nos espera o dia de amanhã vamos remando contra a correnteza. Assoberbados de serviço. Em busca de uma situação mais confortável que nos permita viver em brancas nuvens num futuro incerto.

E a gente acaba passando pelo cume de uma cordilheira. Dobramos a serra num farfalhar de asas qual uma ventania poderosa.

E a labuta não termina. A nossa agenda indica que nem no feriado estamos livres do trabalho.

E o telefone tilinta. No meio da noite. E temos de novo acordar para voltar ao hospital.

A enfermeira indormida nos recebe com cara de sono. Ela também passou a noite em claro embora a noite seja escura.

E voltamos ao centro cirúrgico para reoperar o mesmo paciente cuja sonda entupiu. Não era sem tempo. Caso retardássemos um minuto sequer o mesmo pós operado não sobreviveria. Fatalmente seria mais um óbito a ser notificado. E mais uma vida a ser perdida.

Já hoje. Depois de quase cinquenta anos de graduado mesmo assim não tenho parança. Como um cavalo inteiro com seus hormônios em alta.

Construo casas. Não eu. O pedreiro e seu servente. Os quais seguem à risca o projeto do engenheiro.

Não satisfeito com o arranha céus erguido passo a outra empreitada. E novo edifício soergue dos alicerces. E como gasta areia, brita, cimento e ferragem.

A cada fim de semana um balaio cheio de notas miúdas vai pelos ares das mãos ásperas dos operários. E minhas reservas monetárias ficam mais e mais exíguas. E tenho de me redobrar no trabalho.

Novas noites insones. Olheiras se desenham no canto dos olhos encovados.

E mesmo assim não paro de construir. Mais cimento.  Mais areia e brita. Muito mais ferragens.

E eu não desisto de parar de comprar novos terrenos. E mestres de obras e pedreiros, carpinteiros, bombeiros, eletricistas, se somam para acabar de liquidar de vez meus parcos rendimentos.

Até que chega uma hora a qual não desejaria jamais que chegasse.

Meu aniversário se avizinha. Meus setenta e dois anos finalizam dizendo: “basta. Chega de construir. Você não é mais jovenzinho esperto. Muito menos espertalhão. Para. Finaliza. Sossega o facho. Construa sim a felicidade. Ela não espera que você a busque nas madrugadas insones. Nem mesmo nos plantões diuturnos. Nem nos centros cirúrgicos reoperando pacientes. Um dia chega a hora de parar de vez. Experimente assentar-se a um banco da praça a ver um pardal se acasalar.  Ou uma rolinha filhota deixar o ninho. Saboreie a doçura da vida que lhe resta. Você, prestes a completar setenta e três anos já é hora de parar”.

E eu, com minha teimosia renitente, penso entre meus senões: “parar de vez nuca. Sim. Não irei deixar a felicidade escapar-me por entre os dedos. Vou buscá-la na singeleza do singelo. Nas tezes crispadas pelo sol dos homens do campo. No bucolismo dos ares campesinos. No silêncio das noites enluaradas. Quando os pirilampos iluminarem as estradas poeirentas ou barrentas. Lá na minha rocinha encantada. Onde encanto-me por qualquer coisa. Ou por nada”.

 

 

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