Quando a gente se olha no espelho. Bem cedo. Depois de uma noite mal dormida. Numa bela cama king size. Ao lado da mulher a quem amamos. E ela continua a ronronar ao nosso lado. De olhos fechados sem a menor intenção de acordar.
Como de rotina encaminho-me ao cômodo de banhos. Meio sonolento ainda. Destampo a tampa do vaso sanitário. Ali deposito meus dejetos. E a seguir vou a cozinha perto. Retiro o liquidificador do armário da cozinha. Dentro dele atiro duas bananas já maduras. Como eu já mais que amadurecido pelos anos. Junto às bananas descascadas misturo duas pitadas graúdas de Maltodextrina sabor limão. Uma dose invejável de leite gelado de dentro da geladeira entulhada de produtos a serem usados a hora do almoço. E, se volta ao meu quarto. Ainda de janelas fechadas para não acordar minha adorável esposa ainda envolta em duas cobertas. E o relógio atabalhoado mostra menos de sete da manhã. É chegada a bem dita hora de lavar o rosto macilento. Abrir finalmente os olhos dorminhocos. Higienizar a minha dentição quase perfeita. Molhar os cabelos desgrenhados pelo sono amassados. E pentear o que deles restou. Não são muitos fios. E, finalmente. Antes de vestir a mesma roupa dependurada no cabide. De volta ao banheiro. Por fim me fito no espelho. E transcrevo cá a nossa prosa costumeira.
“Bom dia alcagueta. E você? Tem a mesma opinião sobre a minha pessoa? Considera-me velho como um par de sapatos furados na sola? Desdenha da minha idade provecta? Ou apenas me diz. Como sua voz espelhada- você não deve ser uma pessoa cuja vaidade em verdade se trata de uma virtude ou defeito inerente a você. Já se passaram anos e anos. Seus cabelos caíram pela metade. As cãs são o que restam de suas melenas topetudas. Seu olhar não tem o mesmo viço e igual argúcia. Olheiras rasas marcam-lhe o semblante. Em tudo em você me lembra o passado”.
E eu não o contradigo. Digo sim as suas admoestações positivas. Tudo que o espelho disse tem sua verdade. Não poderia ser melhor que as palavras ditas. Em cada manhã. Em cada dia que nasce. As citações de dantes espelham a afável realidade.
Vamos nos reportar ao passado. Fazendo as contas. Sem ser preciso lançar mão da calculadora. Já nesta manhã de quinta-feira. Oito de dezembro. Após deixar os setenta e dois anos escondidos numa gaveta de um armário antigo. Quase tanto como eu. Há inexatos sessenta e seis aninhos. Perdoem-me o diminutivo. Já disse que quando chamo um dos meus peixinhos de pacuzinho. Soa bem melhor que no aumentativo. Era euzinho que ia me graduar no prezinho. Antes de ser guindado ao primeiro ano do curso primário. Aos mal vividos sete anos de idade. Já longe da idade que me cavouca nos dias de hoje. Naquele mesmo auditório de ontem de noite. Vi-me nos passinhos espertinhos dele. E como meu primeiro neto se parece comigo muitos anos distante de agora. Uma velha fotografia que se mostra as minhas costas não me deixa mentir. Euzinho de terninho azul marinho com riscas de giz apontando meu dedinho como se fosse um revolvinho apontado para um alvo imaginário. De olhinhos quase fechados no colo de minha saudosa tia Cida Rodarte. Todo gabola nos ombros de meu querido pai. Peladinho num galinheiro dando milho às galinhas sem medo de perder a minha fimose.
Na noite de ontem foi o dia da formatura do meu querido netinho Theo. Irmãozinho do não menos amado Dom.
Fomos ao auditório Lane Morton em companhia de minha filhota Bárbara. Da Pat. Mãe postiça tanto do Theo como do seu irmãozinho mais novo- Dom. Da minha querida esposa Rosa botão feito mulher. A mesma que vai entrar na casa dos setenta de hoje a três dias. Do meu genro Daniel. E muitos pais. Avós e aparentados.
E nós, assentados a uma cadeira de madeira de encosto reclinável. Diga-se de passagem de nossos traseiros pouco confortável.
Assistimos. Deslumbrados e de corações saltitantes víamos aquelas crianças dançarem fantasiadas. Ao som de músicas cantantes. Tendo como participes as suas mestras. Creio que chorosas e lacrimejantes. Embora que. De uma distância considerável não podia ver o que se passava em seus olhos.
Enfim foi a vez do meu querido Theo entrar em cena. No mesmo palco onde eu menino. Na sua idade. Era um personagem teatral de uma peça anos antes levada ao mesmo teatro. Eu era o caçador. Álvaro João era o lobo mau. Dona Vandinha era não só a diretora e também a minha fessora do segundo ano do curso primário onde Theo vai estar no próximo ano.
E a presença do meu netinho Theo. Tão esperada por nós. Passou a dançar como um Fred Astaire moderninho.
Fui levado a minha infância perdida. Cujos anos não voltam mais.
De repente me vi nelezinho. Não sei se irão aceitar meu escrito. Mas papel aceita tudo. Mesmo disparates como estes que aqui vão escritos.
De repente me vi tal e qual, meu querido Theo. Amanhã, ou mais tardar num outro amanhã. Vai ser a vez do Gael e do Dom.