“Você já trabalhou muito”

“Amadurecer é contar a história sem pular a parte que você também errou.”

E errar é humano. Persistir no logro é sinal indelével de burrice.

E quem já não caiu e se levantou? Mesmo refém da dor da queda sentindo-se um retrato do sofrimento. Já que a dor é inevitável. Mas o sofrer se trata de uma escolha que cada um de nós faz. Dependendo da força que se esconde dentro de nós mesmos. Cada um é cada um. Sujeitos a ter a energia de uma descarga elétrica. Uns morrem eletrocutados. Já outros apenas sentem eriçar-lhes os cabelos parecendo um porco espinho assustado com algum predador que a ele ameaça.

Já fiz de tudo um pouquinho durante a minha existência hoje alongada em mais de setenta e três anos de velhice que em absoluto não a sinto aqui dentro. Ou mesmo quando me fito no espelho a cada madrugada.

E que dia insanamente maravilhoso amanheceu neste nove de dezembro. Sol a ofuscar-me os dois olhos. Ao chegar aqui, na minha oficina de trabalho, a luminosidade era tamanha que tive de imediato de cerrar as folhas verdes das persianas para que o brilho do sol não competisse com meu próprio brilho ofuscante.

Hoje, dezembro de dois mil e vinte e dois, neste mesmo dezembro dezembrento completo não somente mais um ano de vida.  E estou quase fadado a ter no meu calendário quase cinquenta anos de graduado em medicina.

Foi naquela turma de cento e sessenta esculápios cheios de sonhos. Daquele ano de mil novecentos e setenta e quatro. Que, becados, de banho tomados, desfilávamos garbosos nossos rostos juvenis, naquele belo ginásio de esportes. Foi no Minas Tênis Clube que a efeméride aconteceu. Recebemos aquele canudo onde uma lista de cento e sessenta jovens médicos iriam começar a sua lida. Alguns de nós despreparados para exercermos a espinhosa missão de curar ou atenuar o sofrimento daqueles pacientes. Jovens, adultos, crianças do sexo masculino ou seu partner.

E não satisfeitos com nosso diploma perstíamos estudando com afinco. Pensando em nos especializarmos em um detalhe apenas desta colcha de retalhos que perfazem o ser humano.

Alguns colegas buscaram se notabilizar na parte mais alta do homem. O cérebro os intimava a pensar. Já outros decidiram ser cirurgiões a escrutinarem desde o abdome antes inviolado até novamente adentrar em cavidades já mexidas como ovo batido. Outros médicos recém egressos de faculdades não tinham sonhos mais esvoaçantes. Contentaram-se em continuar apenas empunhando o seu diploma. Dobrando e se desdobrando em plantões que varavam noites insones. E, noites em vigília, atentos a buzina da unidade de pronto atendimento. Faziam antes o sinal da cruz para que Deus os ajudasse no diagnóstico e tratamento daquela patologia que a eles parecia ser insolúvel.

Já a maioria persistia em seus estudos. Já que seus devaneios maiores era caminhar pela estrada universitária. Na intenção louvável de formar novos médicos. Amparados por seus títulos de mestres ou doutores na expressão exata da palavra.

E eu, votando a ser eu mesmo, ao chegar a minha querida Lavras, vindo de terras dalém mar, precisamente da Espanha. Para cá aportei. De mala cheia e caniço e samburá. Aqui cheguei. trazendo na bagagem repleta novidades na área da minha especialidade- Urologia.

Fui o pioneiro não somete cá, na Santana das Lavras do Funil, a operar a próstata por um aparelho que. Uma vez introduzido pela uretra. Chegava ao fundo dela. Olhando a intimidade da bexiga. Sob visão direta, para reduzir a próstata em fatias finas. E aspirando os fragmentos até verem a luz do dia. E, para controlar o sangramento usava cauterizar os pequenos vasos usando o eletro cautério. E quantas noites voltava a Santa Casa, naquele prédio vetusto, na intenção única e precípua de desentupir sondas e dar alívio aos pós operados.

Foram mais de quarenta longos anos neste metier incessante.

Hoje, prestes a completar cinquenta anos de graduado. Ainda longe estou da aposentadoria total. Meu saudoso pai sempre dizia: “não se aposente nunca meus filhos. O ócio é o começo do fim”.

E eu persisto. Não desisto. Continuarei a exercer a minha arte até quando os anjos disserem amém. Até quando os pacientes estiverem cansados do meu dedo indicador da mão direita. Da minha gabolice em dizer-lhes que sou médico escritor. Não poeta como muitos pensam.

Creio que. Num final de tarde. Na vizinha Ijaci. Quando fui saldar uma conta na loja do Bruno a Padroeira. Sua esposa e companheira me disse, sorridente: “o senhor já deve estar aposentado por completo. Também pudera. Já trabalhou muito”.

Será? Que eu já tenha dado o que tinha de dar? Não me resta. A partir de agora. Dependurar as chuteiras e o bisturi? Assentar-me a um banco da praça e ver as folhas mortas despencarem do tampo das árvores? Não sei ainda. Como espero morrer num trinta de fevereiro. De um ano bissexto. O mesmo desejo de curtir minha total aposentadoria no mesmo dia e mesma data.

Quem sabe daqui a cem anos isso vai ser verdade?

 

 

 

 

 

 

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