Aquele moço do guarda-chuva cinzento e eu

Sei que aquele artefato, que protege tanto da chuva quanto do sol, é o pai dos esquecidos.

Quem não o deixou ao desalento, abandonado a um canto, olhando, sem entender o desencanto, a ida do dono a outro destino, ignorando-lhe a presença estática, sem poder abrir as barbatanas para assim poder ver sua aba larga proteger a pessoa escondida à sua sombra que nada cobra para cobrir o corpo naquele calor dos diabos, é bom se lembrar de que estamos em pleno verão, ou da chuva que cai docemente, aquela chuvinha tão esperada pelos homens do campo, o tal guarda-chuva nada pode fazer contra as tempestades de vento, não mais avidamente esperada por quem plantou uma rocinha de milho para matar a fome da vacada, que de boca aberta aguarda o cocho lotado de trato, que as faz aumentar a produção de leite, que mais e mais cai o preço na estação chuvosa, que o digam os pobres produtores.

Outra verdade que não escapa à mentira, digo-lhes agora. Quando se sai com o tal guarda-chuva debaixo do braço, pressentindo água a cair do céu, logo as nuvens se dissipam, o sol põe as manguinhas sufocantes de fora, o céu sorri na sua azulice primavera, mais uma vez a tal umbrela (em italiano se grafa assim), (paraguas em castelhano), as águas da chuva se despedem, penso eu: o tal aparato de proteger da chuva parece que tem poderes de desviar a chuva para outro rincão.

Mas, voltando ao caso que começo a contar, não é mais uma invencionice minha, é mais uma verdade inverídica, ou quase, o tal moço do guarda-chuva cinzento mora, ou não?, perto da minha casa.

Sempre que passo, não em horas tempranas, o jovem, alto, magro, que sempre veste uma calça rancheira, gasta pelos anos sem ver a máquina de lavar, de cabelos negros, a mesma camisa listrada, mangas compridas, com o seu guarda-chuva que mais parece um guarda-sol de praia, nunca aberto, como deveria estar nos dias de chuvadonha, trazendo na mão uma latinha de ervilha, sem as bolinhas verdes que deveriam estar lá dentro, para quem o vê, ou na porta da padaria, ou numa lanchonete famosa na cidade onde moramos os dois, mendigando moedas ou uma notinha de irreal valor, ele está naqueles pontos antes narrados.

Nos dias quando a féria foi pouca, nos entrecruzamos na parte de cima da cidade, quase nas barbas da pracinha enjeitada, onde convivem, amistosamente, uma pizzaria e um bar que exibe boas músicas nas tardes noites de domingo.

Ele, um dia, consultou-se comigo num posto de saúde, bem perto do meu consultório de urologista. O moço alto, do guarda-chuva quase da mesma altura que ele, apresenta sinais de sofrimento circulatório nos membros inferiores, patologia que o faz coçar sempre que ele pode. Deve ser bastante incômoda a tal enfermidade, pois as duas extremidades mostram cores cruéis, cinzentas, quase negras, prestes a necrosarem. E o deixarem sem poder andar.

O que será do seu guarda-chuva enorme, se assim suceder?  Mais uma vez o abandono irá acontecer.

Desconheço o nome, o endereço, o CPF, ou qual o número da carteira de identidade do seu portador. Creio que para ele não importam ambos os dois.

O fato que gostaria de narrar, aos leitores das minhas crônicas, é o limite estreito entre a sanidade e a louquice, onde começa um, até onde se espreguiça o outro.

O passado nos ensina que, tanto Einstein, quanto Leonardo da Vinci, ou seu colega de genialidade, o grande artista Michelangelo, o da capela Sistina, eram taxados de insanos em tempos idos.

O mesmo aconteceu a outros caras geniais, que só o futuro assinou na linha de baixo, a favor deles, desentocou-lhes a genialidade, e inseriu-os definitivamente nos anais da história, não é preciso ir aos compêndios para assim comprovar.

Um dia destes os nossos caminhos de novo se cruzaram.

Ele esmolava na porta da lanchonete. Mas tinha a latinha de ervilhas vazia.

O tal guarda-chuva cinzento jazia inerme pendido ao seu antebraço esquerdo. E eu trazia um semelhante, fechado, usado não como bengala, ainda não careço, e sim na intenção de me proteger da chuva, deveria saber que a mesma seria enxotada, a exemplo de cachorro vadio ao entrar onde não poderia. Em verdade a tal bem-vinda chuva foi para outro lado, não onde ela era tão aguardada.

Tempos ditos, depois, ao ver o moço do guarda-chuva parado, assentado num degrau, perto da padaria vizinha da casa de pizzas, coçando a perna cinzenta, quase da cor da sua umbrela, prestes a gangrenar, tomara não, foi que me recordei das semelhanças entre nós.

O jovem do guarda-chuva é taxado de insano. Uma louquice mansa, que não agride a ninguém. Simplesmente ele assim procede, mansamente, nunca o vi com o guarda-chuva funcionante, aberto, com suas barbatanas auxiliando as asas da sua sombrinha gigante a se manterem entreabertas.

E eu? Escrevendo tanto, lançando livros, quase um a cada ano, tentando incutir cultura em mentes não tão abertas ao saber, tentando vender livros enfiados naquela pasta escura, a qual trago dependurada pendida ao ombro, tarefa inglória, difícil, é mais fácil vender guarda-chuva durante uma chuvadonha, muito mais, do que enfiar livros em quem não tem o saudável costume de ler, não sou considerado louco?

Eu e o moço do guarda-chuva escuro, igualzinho ao meu, não somos parecidos, em parte? Se não me contestem agora, ou se calem para sempre…

 

 

 

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