A esbaforida saracurinha

Nascida num brejo que um dia ficou seco devido a estiagem prolongada que se estendeu setembro adentro, aquela avezinha peralta, de uma família de não sei quantos ovinhos chocados, um belo dia teve uma enorme decepção.

Por culpa da falta d’água o brejo onde folgava secou. Ficou reduzido a um mar de taboas verdinhas, plantas vorazes que, se não contidas na sua vontade de abraçar todo o entorno, acabam por dar um final ao pobre açude pequeno, desaguadouro de minas borbulhantes  que em sua margem nasciam.

Acontece, por uma infelicidade tamanha, o dono do pedaço de chão bem mínimo, na estação do inverno, quente que foi desta vez, acabou deixando furar um poço profundo, na intenção de dali verter agua, fresquinha, sendo levada por uma bomba possante a uma caixa dágua enorme no alto do morro. Dali descendo, por gravidade, as casas locais, única fonte de água potável em toda região.

Com o pequeno açude desguarnecido do precioso líquido razão do nosso viver, sem os peixinhos miúdos que ali sobreviviam, a saracurinha pernalta acabou se mudando para uma represa enorme, feita na intenção de gerar energia, mais uma vez sugando o pobre rio que já foi grande, mais e mais diminuído em suas corredeiras, antes altivas, agora domadas no seu ímpeto de irem adiante.

Ali não teve o destino que gostaria. A concorrência era enorme. Aves mais capacitadas em pescaria acabaram por tirar-lhe o alimento da boca, era ela, a pobre saracurinha solitária, já que a família a ela abandonou, contra tudo e contra os poderosos, elazinha não suportou, por muito tempo, a disputa desigual.

Do lago verde formado pela doma do Rio Grande a saracura pequena mais uma vez se mudou. Com uma mochilinha às costas lá foi ela, de charco em charco, de deu em dedal, rumo ao desconhecido.

Como só tinha experiência por ali mesmo, nunca havia ido à Aparecida do Norte, nem mesmo em romaria, pra onde iria? Se nem passaporte dispunha? Nem mesmo carteira de identidade teve o cuidado, em sua curta idade, de ter com ela mesma, para ter algo no qual se apegar.

Pegou carona, sem ser vista, no velho caminhão leiteiro, escondidinha as suas asinhas num latão de leite enferrujado e gasto pelos anos todos de dentro dele levar leite em natura por vezes onde lambarizinhos de rabinhos vermelhos iam sem querer desejando.

O caminhão, hoje em dia em desuso, parou num laticínio modernamente deixado à bancarrota por falta de pagamento dos seus produtos lácteos.

A pobre saracurinha, assustada com a azáfama da cidade grande, nunca havia visto tanta gente junta, tentando se fazer de nada, numa correria misturada a voos rasantes, cautelosamente, foi ter a um condomínio verde, onde morava gente abastada. Boa gente, embora do lado de fora a maioria fazia um juízo errado do luxo que todos viviam.

Ali morava eu. Junto a minha esposa. Já que meus filhos se fizeram ausentes, pois que hoje avoam por suas próprias asas suficientemente fortes. Já que deixaram o ninho lar há anos passados.

Nesta manhã quente, seca, do mês de setembro, ao subir a rua principal, que leva meu lar doce lar ao portão principal do condomínio, no meio da avenida deparei-me com uma avezinha tinta entre cinza e marrom, em desatinada correria, tentando adentrar por uma porta fechada, naquela hora temprana.

Tentei ajudar a saracurinha espevitada. Não consegui nem chegar perto dela. Embora tentasse correr como elazinha.

Foi neste átimo de instante, assim que percebi debaldes minhas tentativas de colocar a salvo aquela avezinha peralta, foi que me lembrei de mim, meninozinho artioso, nos verdes e bons anos que não retornam mais.

Euzinho criança, peraltinha como a saracurinha sapeca, nas priscas eras da minha infância, ao brincar de pique- esconde por aí e por cá, tentando me por a salvo das obrigações dos adultos, era tal e qual aquela saracurinha escapista, que hoje descobri tentando entrar pela porta fechada de uma casa pertinho da minha, no mesmo condomínio adorável onde me escondo. Tentando me furtar da triste realidade de ser gente grande.

 

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