Triste sina da desditosa senhora Alzheimer

Desde quando de olhos abertos, pela primeira vez, aquela menina lourinha, nascida de parto antecipado, de pais não muito dados, eles viviam às turras desde a lua de mel, ao enxergar a vida com aqueles olhinhos claros, eram azuis da cor do céu, de ascendência alemã, por parte dos dois progenitores, foi observado pela enfermeira do berçário que ambos os olhos fitavam o vazio, um olhar perdido, inexpressivo, como se todo entorno estivesse colorido de uma cor desbotada, cinzenta, morto, apagado.

Aos cinco anos foi dada com autista. Na escola normal foi apartada, considerada aluna difícil, passava as horas todas das aulas olhando pela janela, num olhar ausente, perdido no meio do nada.

O primeiro psicólogo que tentou nela meter diagnóstico entrou em conflito com os pais da criança. Batizada de Aninha Alzheimer, pois tinha num ancestral um parentesco como o alemão que pela primeira vez descreveu os sintomas da doença hoje bem conhecida, e ainda mal tratada, antes conhecida por Esclerose, caduquice, e outros epítetos mais.

E que doença terrível é esta degeneração progressiva das células do cérebro, os famigerados neurônios. Que infelizmente raleiam em nós, considerados idosos, sapatos velhos, tantos vultos importantes foram taxados de portadores da doença de Alzheimer, entre eles cito meu saudoso pai. Na minha concepção tacanha, de não especialista no assunto, acho que tal enfermidade pode ser transmitida por genes ainda não bem identificados. Que deve ser prevenida por exercícios físicos bem orientados, deixar o sedentarismo de lado, procurar se aculturar sem observar a idade, ler sempre mesmo portando pince-nez na dobra do nariz adunco, fazer sexo, se não por sua conta e risco, caso não seja capaz de introduzir o órgão copulador por ele próprio, peçam auxílio ao urologista, especialista em tantas coisas importantes, inclusive as inadequações sexuais.

Voltando a personagem principal do meu escrito, a garota de olhos mortiços e baços, assim que a idade jovem nela botou o chapéu, já que na escola secundária não se deu com as colegas que a olhavam de soslaio, por seus pais foi enviada a um internato de boa fama na capital do estado onde a menina nasceu.

Ali passou metade da metade da sua infância, apenas olhando os arrabaldes, com os mesmos olhos de onde não se percebia vida, tudo ensejava desvario, louquice, autismo.

Um neurologista consultado, médico experimentado, e dotado de ética perfeita, confirmou o diagnóstico de doença de Alzheimer. Depois de um exame físico minucioso, seguido de exames de imagem do cérebro que se parecia normal aos olhos desavisados. Tudo nele era atrofia, a córtex cerebral minguava, notava-se uma importante diminuição do tecido nobre do cérebro.

Aos quarenta Aninha Alzheimer foi internada num sanatório para doentes mentais. Ali ficou mais de dez anos olhando a paisagem colorida, não identificando o amarelo do azul, o vermelho do verde, pois para os olhos dela tudo não tinha cor, seu paladar não identificava o sabor, a vida não passava de uma passarela rota, simplesmente por um motivo singelo: Aninha Alzheimer era em verdade uma portadora da enfermidade pela vez primeira diagnosticada por um alemão, aparentado da família da desditosa senhora Alzheimer.

Foi ontem o acontecido.

Estava eu esperando pelo ônibus que me levaria a um posto de saúde situado na zona norte da cidade. Era ali que atendia a minha especialidade. Hoje, mais tarde, pra ali me desloco, não uso as pernas, como de rotina, pois o tal AME fica longe de onde estou.

Como sempre usava meu fone de ouvido. Agora o de fios longos foi substituído por um sem fio.

A espera foi curta. Menos de quinze míseros minutos. O ponto, próximo a Santa Casa, estava com pouca frequência. Alguns estudantes da UFLA, outros parcos moradores do bairro Jardim Glória, e eu.

Neste ínterim a mim achegou-se uma idosa. Era clara, olhos claros, desprovida de carnes. Usava um par de óculos claros na ponta do nariz adunco. Os cabelos desgrenhados demonstravam falta de cuidado.

Ela, a qual pensei não estar bem com seus neurônios, embora estivesse de ouvidos moucos, por culpa dos dois Bluetooths, interpelou-me vorazmente, com uma voz esganiçada, onde ficava o consultório de um neurologista, velho conhecido. Era bem perto do ponto da Autotrans.

Indiquei a ela o caminho. Tentei fazer a ela entender como atravessar a rua, naquela hora de muito movimento. Havia uma faixa de pedestres logo acima de onde estávamos.

Só que, neste exato instante, no momento em que ela atravessou a rua, fora da faixa indicada, um carro em desabalada correria com ela colidiu frontalmente. Todos os transeuntes nada puderam fazer para impedir o atropelamento. Em menos de dez minutos se viu um corpo esmagado, sangue, ossos partidos, cabelos brancos escorridos pelo asfalto quente. Era mais ou menos dez da manhã, do dia vinte de setembro.

Um carro funerário recolheu as sobras poucas da pobre desditosa Senhora Alzheimer.

 

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