“Cansado de quê”?

Mais uma sexta feira vencida.

Mais um, dos tantos que já vivi, final de semana que na tarde de hoje começa.

Confesso um tanto cansado com a rotina que tem me assaltado.

É sempre a mesma cantilena. Quase igual à missa que o padre reza.

Acordar bem cedinho. Aqui chegar antes das seis. Dar trabalho a esse computador que se mostra cansado. Escrever dando vazão à inspiração que me cavouca por dentro. Atender aos pacientes que ainda me procuram depois de mais de cinquenta anos de medicina. Deixar minha oficina de trabalho lá pelas nove sempre usando as pernas como muletas. Assistir pela televisão algum filme novo pela Netflix. E ao meio dia forrar o estômago com uma comida boa feita pela minha querida secretária do lar que com a gente está há mais de trintanos. Ah! Não fosse ela o que seria de minha fome insaciável. Tenho fome de viver e conviver com meus escritos.  E aqui retornar antes das treze. Para continuar a lida até quando ainda não sei.

Imprecisamente as quinze, sempre caminhando a passos lépidos em direção aquele clube que faz parte do meu passado.  E presente no meu presente. Não sei o que me reserva o porvir. Deixo aquela academia por volta da volta das dezessete horas. Em meu apartamento chego em dez minutos. Tomo um banho morno, nem quente nem frio ao exagero. Visto o mesmo pijama. Quando faz muito calor me desfaço da parte de cima. Volto a mesma televisão. Procuro um filme novo entre tantos que já assisti. E tento fazer as pazes com o sono. Já que não tenho em alta estima as noites e a escuridão.

Essa rotina me tem cansado. Sinto-me fatigado em fazer sempre igual dia após dia.

Já trabalhei tanto que acredito ser merecedor de um descanso.  Afinal perfazem mais de cinquenta longos anos de formatura. Aqui cheguei em meados de um mil novecentos e setenta e sete. Fazendo as contas serão quarenta e oito anos de dedicação integral a medicina. Já perdi noites de sono. Já tive sucesso, entremeados de fracassos, na minha caminhada pela urologia.  Já frequentei incontáveis congressos da especialidade. Agora me contento em observar à distância as novidades.

Confesso um certo enfado pela vida que tenho levado. Um cansaço pra mim sem explicação convincente.

Tenho de tudo e ao mesmo tempo penso nada ter.

Tenho uma família, tanto aquela de onde vim. Como aqueloutra que ajudei a formar. Melhor não seria. Dois filhos que me presentearam com três netinhos. Aqueles molequinhos peraltas são a continuação de mim. O futuro do meu presente. A alegria de hoje e a felicidade que vem junto.

Esse cansaço me tem incomodado. Não tenho como dele me desvencilhar.

Já meu amigo e compadre. De nome simplesinho Ló. Seu pré nome deveras é Aloísio. O resto nem ele nem eu fazemos questão de saber nem conhecer.

Ló tem a mesma idade que eu. Exatos setenta e cinco anos.

Quem nos olha nos olhos nos da quase a mesma idade. Só que um pequeno detalhe faz a diferença.

Aloísio parece ser meu pai. Por que não dizer avô.

Envelhecido prematuramente. Dobrado sob sua coluna torta. Ele quase não anda mais. Tropegamente anda com o auxilio de uma cadeira sem rodas. Empurrando ela como se fosse uma andador desses que uma criancinha usa para aprender a caminhar.

Sua vista capenga. Um par de óculos da espessura de um fundo bem fundo de garrafa tenta atenuar sua carência de visão.

Mas quem diz que seu Ló já deixou de trabalhar comete um senão imperdoável. Ele nunca se desgruda do cabo de uma enxada. Dorme agarradinho a uma foice mais cegueta do que ele.

Seu Ló mora numa rocinha pertinho da minha. De vez em quase nunca nos encontramos.

Foi num dia como esse. Aliás foi num sábado. Que nos demos de olhos.

Ló estava carpindo mato quando o encontrei. Fazia um calor que dava pena em quem mora em Cuiabrasa (leia Cuiabá, capital de Mato Grosso) num verão calorento.

Fazia tempo que nós não nos víamos.  Desde janeiro do ano que já passou.

Seu Ló nem reclamava do calorão. De peito desnudo suava em bicas escorridas. Nem chapéu ele usava.

Há mais de três horas inteiras ele carpia aquele sarandi.

Acheguei-me a ele com essa fala mansa: “e aí amigo Aloísio. Tá tudo nos trinques? Tá cansado não de trabalhar? Que eu saiba vosmecê já se aposentou. Tem idade pra isso né? Estou numa canseira que dá desgosto. Não vejo a hora de descansar de vez pra nunca mais trabalhar”.

Ele me olhou de rabo de olho meio vesgo. Largou a foice de lado. Tomou um gole d’água num gole só. E retrucou meio enfezado dizendo: “cansado de quê? Você quase não trabalha mais. Nunca vi ocê carpindo mato. Vive contando causos nos seus livros. Acorda cedinho pra ficar mais tempo à toa. Eu sim devia estar cansado. Mas não me canso de labutar. Sei que ocê ainda não se aposentou de vez pra sempre mas vive como se fosse jubilado. Cansado devia estar eu. Pega nessa enxada e vem capinar comigo”.

Agradeci o amável convite e dei de pernas pra bem longe dele.

A partir de então não mais me senti cansado. E continuei a não fazer nada que me fizesse fatigar.

Sombra e água bem fresquinha. E um computador bem pertinho onde eu pudesse escrevinhar. Nada melhor pra curtir a minha paz.

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