Não tenho mais

Como a vida muda a gente.

Antes queríamos o sol e a lua.

Em meninos gostaríamos de ganhar presentes em datas marcadas no calendário dos anos.

No aniversário dos meus dez aninhos meu presente preferido foi uma bicicletinha de rodinhas amarelas. Ela me foi presenteada. E, na primeira volta acabei caindo numa ladeira empinada. Aquela queda resultou num galo na minha testa ancha. Que desinchou devido a uma colher gelada ali colocada por minha mãezinha. E em poucos minutos de desassossego acabei montando de novo naquela bicicletinha. Dessa vez sem as rodinhas e aprendi a pedalar. Como até hoje não me esqueci.

Com o tempo, ganhando anos, acabei mudando meus gostos e preferências. Aos quinze, já na escola secundária, prestes a começar o científico. Cdf, bom aluno, já pensando no que seria no mais tardar dos anos. Deixei de ganhar presentes. Foi quando deixei a casa paterna para continuar os estudos na linda Belo Horizonte.

Foi quando, por ter sido vencedor no vestibular de medicina, na universidade federal das minas gerais. Meu saudoso pai me presenteou com um fusquinha todo incrementado. Qual não foi meu desalento quando ele foi surrupiado numa noite escura durante um plantão num hospital de BH. Dias depois seus restos mortais foram encontrados. Todo depenado, tal e qual uma galinha da qual só sobraram as penas e sem as rodinhas. Que pena senti de mim mesmo.  Foi um presente que me saiu pela culatra. Desde então tenho certa aversão pelos carros. Uso as pernas como se fossem rodas. Ando como noticia ruim pelas ruas da cidade.

Já na minha idade. Deixando distante a mocidade.  Não tenho mais desejo de ganhar presentes.

De menino presenteado passei a ser avô presenteador. Como me apraz presentear aos meus netinhos. Como gosto de ver as suas carinhas alegres quando eles recebem presentes.

Não tenho mais ambições na vida. Já ganhei tudo que queria ganhar.

Ganhei anos e poucos desenganos. Ganhei experiência nos meus muitos anos.

Tenho ganhado mais que mereço. Aquela família de onde vim foi meu melhor presente.

A outra que ajudei a constituir considero um presente maior.

Ganhei idade. Desfiz-me das vaidades. A mim não importam mais aquelas melenas topetudas as quais se mostram no meu álbum de formatura. Acabei perdendo meu bigode negro como a asa da graúna. Em compensação minha cara hoje se mostra lisinha como bunda de nenê.

Ganhei anos.  Mas não perdi o desejo de viver.

Quase não sonho mais. Mas não deixo de sonhar com um mundo melhor.

Não tenho mais pretensão de enricar. Tudo que conquistei pra mim é suficiente. Não irei deixar bens materiais.  Deixarei apenas livros e um amontoado de palavras e ensinamentos a serem lidos. Que façam bom proveito deles.

Não tenho mais ousadia de deixar a minha família posses ou dinheiro no banco. Tudo que tenho vocês já compartilham.

Não tenho mais poder sobre meus filhos. Eles já são adultos o bastante para saber o que será melhor para seus filhos.

Não tenho mais vontade de saber o que me reserva o futuro. A mim me basta bem viver o presente.

Não tenho mais a alegria dos tempos de outrora. A felicidade que agora sinto se esvai de hora em hora.

Já tive bons momentos na minha infância perdida. Agora pouco me resta na minha senilitude a ser vivida.

A vida que tenho levado que bom seria continuar a vivê-la. Dessa maneira, na mesma mesmice costumeira. Entre letras e palavras.  Amontoadas e encadernadas em livros. Como esses que enfeitam a minha estante.  Que, se forem lidos, melhor ainda.  Se forem passados de mão em mão. Oh! Meu bom Deus, que gratidão.

Sei que não tenho mais tanto tempo de vida. Que eu possa fazer do meu resto alguma coisa útil. Não um traste inútil cujo destino seja ser jogado fora.

 

 

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