Quem ainda, na profissão que escolheu, gostaria de ter sido melhor naquilo ou naqueloutro?
Gostos variam. Uns gostariam de ser mais capazes. De ver sua capacidade desdobrada em mais de mil. Como Bombril de mil serventias. Aquela esponja que da brilho ao ofuscado. Que limpa sem arranhar.
Já outros preferem dar cores à vida. Essa vidinha sem graça que não resiste à rotina em que vivemos. Cada dia é igual a outro dia. E nada de novo acontece. Pra mim a vida seria insuportável não fossem as mudanças.
Há coisa de mais de cinquenta anos enveredei-me pelos caminhos tortuosos da medicina.
Muitos deles não consegui endireitar. Mesmo assim persisti. E ainda estou aqui e tão cedo não pretendo parar de caminhar.
Comecei nos idos anos de um mil novecentos e setenta e sete. Quando aqui cheguei vindo das terras de além mar. Em setenta e quatro me diplomei. E me especializei até três anos mais.
Tive um começo tumultuado. Inexperiente naquele começo de vida tremia ao entrar no campo cirúrgico. Como não tinha ajudantes só me restou treinar um enfermeiro pra me ajudar. Foram muitas operações bem sucedidas. Já outras nem tanto. Entretanto fui adiante.
Perdi a conta de quantas próstatas joguei no balde. E quantas pedrinhas encalhadas retirei do caminho entre os rins e o lume do dia.
E quantas noites de sono perdi. Até hoje não sinto falta das noites. Prefiro o clarume das madrugadas à escuridão do quarto onde tento dormir e não consigo.
Comecei pelas operações de fimose. E agora, quase no ocaso do meu descanso termino por essas mesmas operaçõezinhas que libertam os jovenzinhos de serem afetados por alguma doencinha de natureza sexual. Já que a remoção do excesso de prepúcio melhora a higiene.
Gostaria de ser um médico melhor. Mais humano e caridoso. Se não precisasse tanto de recursos no começo da minha vida profissional. Cobrei o que achava justo. Ganhei dinheiro que precisava. Construí um patrimônio grande o suficiente para viver confortavelmente. Tudo isso agora não mais me pertence. Deixei como legado aos meus filhos e netos.
Se pudesse começar de novo faria exatamente como fiz. Acordando no meio da noite. Voltando ao hospital para reoperar pacientes cujas cirurgias complicavam. Desdobrando-me em plantões intermináveis. Pulando de emprego a outro. Já que os salários eram tão irrisórios que tinha de me desdobrar em mais de um.
De tanto tentar salvar os outros me esqueci de tentar salvar a mim mesmo.
Queria talvez ter sido um médico melhor. Se eu pudesse não cobraria consultas ou operações. Trabalharia graciosamente. Ah se eu pudesse começar de novo. Desprender-me-ia de ambições maiores. Não iria escolher a medicina como profissão. Ela exige muito da gente. Não somos omissos nem negligentes. Temos direitos e não apenas deveres.
Ficamos cansados sem o devido descanso. Submetidos a jornadas duras de trabalho. Aposentadoria nem pensar. Como sobreviver com os caraminguados que recebemos da previdência social? Hoje percebo pouco mais de um salário mínimo. O resto tenho de ganhar ainda trabalhando. Somos considerados velhos e decrépitos a partir dos sessenta. Somos logo substituídos pelos médicos mais jovens. Já que todos pensam que novidade é coisa boa.
Médicos ficam sedentários devido ao excesso de serviço. De tanto prestarmos serviço aos outros esquecemo-nos de servir a nós mesmos. A gente acaba morrendo daquilo que tentamos combater nos nossos pacientes. Cuidamos dos outros e descuidamos de nós mesmos.
Talvez gostaria de ser um médico melhor. Quem sabe noutra profissão me sentiria mais feliz e confortável.
Mas não troco minha medicina por nenhuma outra. Aqui me realizei. E vou continuar caminhando, passo a passo, errando ou acertando. Até quando um dia decidir parar. Ainda não sei quando. Penso que vai ser no dia quando deixar de amar a vida com a mesma intensidade que amo a minha família e aqueles que ainda me procuram.
Somos finitos e mortais como quaisquer outros. E nem melhores que ninguém mais…